Conjuntura

Houve golpe em 31 de março de 1964 e não foi um marco “da evolução política brasileira”

Movimentação das tropas em Juiz de Fora com o destino ao Rio de Janeiro onde se deu o golpe (Foto: Acervo Maria do Resguardo)

Há exatos 58 anos, um golpe de estado destituiu o governo constitucional do presidente João Goulart e implantou uma ditadura militar marcada pela violência e repressão. A Comissão Nacional da Verdade contabilizou 434 brasileiros mortos ou “desaparecidos” entre os anos de 1964 e 1985. Estima-se que 50 mil pessoas tenham sido presas por razões políticas, sendo que 20 mil delas foram submetidas a torturas.

O regime autoritário instaurado desrespeitava os direitos humanos, perseguia opositores e dissidentes, promovia detenções arbitrárias, desaparecimentos forçados e eliminação física. O Parlamento foi fechado e as instituições desrespeitadas rotineiramente. Foi suprimida a eleição para presidente da República. A manutenção do poder se dava por meio de regras de ocasião ou “casuísticas”.

O Ministério da Defesa, no entanto, parece querer reescrever a história. Em uma nota oficial, publicada na noite dessa quarta-feira (30), o ministro Braga Netto e os comandantes das Forças Armadas falam que o “Movimento de 31 de março de 1964 é um marco histórico da evolução política brasileira, pois refletiu os anseios e as aspirações da população da época”.

E segue a nota negando toda a historiografia brasileira ao afirmar que 1964 resultou no “fortalecimento da democracia.” Os autores, por incrível que pareça, falam em isenção e honestidade para analisar o momento histórico. “A história não pode ser reescrita, em mero ato de revisionismo, sem a devida contextualização”, diz outro trecho da nota.

A publicação, na forma de ordem do dia alusiva ao 31 de março, última do mandato do presidente Jair Bolsonaro (PL), coroa uma série de análises dessa natureza sobre o golpe realizadas durante o atual governo. A avaliação é do professor do departamento de história da Universidade Federal de Juiz de Fora, Fernando Perlatto.

Para ele, o absurdo da nota é tamanho que não cabe nem falar em equívoco. “O que o Ministério tenta fazer é disputar uma narrativa em torno de um evento sobre o qual não há possibilidade de disputa de narrativas. Não existe um historiador sério que produza estudos e pesquisas sobre 1964 que diga que não foi um golpe. Foi um golpe”.

Perlatto considera possível debater se o golpe foi somente militar ou se foi civil e militar, uma vez que muitos civis participaram efetivamente do processo. “Houve a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, o apoio de entidades empresariais… Enfim, existe o debate historiográfico sobre as razões do golpe e os atores que o protagonizaram”.

O que não existe, segundo o professor, é qualquer discussão minimamente séria na historiografia em relação à existência ou não do golpe. “É uma manifestação que faz parte de uma retórica negacionista em relação ao passado, sem qualquer amparo nas produções sérias que vêm sendo desenvolvidas nas universidades.”

Ele lamenta o fato de não se tratar de uma narrativa isolada. “Isso está presente no governo, nas Forças Armadas e também em outros setores da sociedade. O (ministro) Dias Toffoli, quando presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), disse que em 1964 não tivemos um golpe, mas um movimento. Outra interpretação completamente equivocada”.

O mais grave da nota do Ministério da Defesa, no entanto, segundo Perlatto, é o trecho onde se afirma que 1964 “salvou a democracia”. “Nós tivemos o oposto disso. Como conciliar essa retórica de salvar a democracia quando temos um regime que fechou o Parlamento, cassou mandados, promoveu perseguição política, censura e repressão?”

A ideia contida na nota do Ministério da Defesa de que, na ocasião, foi necessária a ação das forças armadas para preservar as instituições e a democracia, também é criticada pelo historiador e professor da rede estadual de educação de Minas Gerais, Mateus Fernandes. Segundo ele, o discurso não se sustenta.

“Falar em preservar as instituições e a democracia implantando uma ditadura, restringindo as liberdades civis e políticas, perseguindo aqueles vistos como opositores do regime, fechando o Parlamento. Não há um mínimo de coerência nisso”, contesta o historiador. Ele também chama atenção para o fato de a nota falar em “ameaças”, mas não especificar. “Podiam falar que viam uma ameaça nos movimentos sociais engajados sob princípios socialistas”.

A menção à anistia geral e irrestrita pelos autores também soa como uma interpretação singular do período histórico, segundo o historiador. “Eles se eximem de qualquer tipo de culpa com a anistia ampla e irrestrita. Ou seja, colocam na conta do ordenamento jurídico a salvaguarda de tudo aconteceu ao longo dos 21 anos de ditadura. Os abusos cometidos foram, para eles, um mal necessário”.

Por fim, Mateus considera que, com a nota, fica claro que os militares estão no poder mais uma vez. “Com Bolsonaro, os militares tomaram as instituições e, assim, se manifestam de forma mais enfática. Isso acontece porque houve essa remilitarização do país, onde as forças armadas se sentem confortáveis. A ideia do golpe como é vendida faz parte do que esses militares aprenderam como história na caserna”.