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Os russos não prestam

Painel sobre cancelamento cultural na Irlanda do Norte (Foto: K. Mitch Hodge/Unsplash)

Guerra é guerra. Inimigo é inimigo. Se você perdoa e esquece que é inimigo, ele não vai esquecer. Como naquela cena daquele filme em que o soldado americano deixa o alemão sobreviver e minutos depois (pros soldados foram dias ou semanas) o alemão mata uns americanos. Spielberg é imperdoável.

Todos deveriam ser assim, não apenas os italianos que suspenderam um curso de literatura russa porque os autores lidam diretamente com crime, castigo e guerra. E paz também, mas não é hora de perdões. E demitir o regente de uma orquestra é sensato, afinal, orquestras podem tocar chamadas para a guerra, como a 1812, do Tchaikovski, outro russo ameaçador.

Pro cancelamento ser feito de modo competente (afinal, estamos em guerra), chega de Cisne Negro e de V de Vingança, e também de Actor’s Studio, criado a partir do método de Konstantin Stanislavski (que pode ter feito parte dos estudos do ator Volodymyr Zelenskyy, mas ele é ucraniano e não cancelamos ucranianos).

Cancelamos sim, ele fez o número do piano.

Mas ele é o presidente da Ucrânia, então não cancelamos.

Ainda no Actor’s Studio, mais do que cancelar, é importante criar um marco pro cancelamento: alguém pode buscar o Oscar do Marlon Brando com a indígena, por favor? Aquilo tem cara de estratégia militar.

E nada, mas nada mesmo, influenciado pelo Construtivismo Russo deve passar pelas telas de qualquer sala ou aparelho fora das fronteiras russas. E nem stalkear as pessoas está permitido, porque o filme que deu origem ao termo é do Andreï Tarkovski. Pior ainda: quem stalkear pelo Telegram precisa ser preso e enviado pra Sibéria, escoltado por um fuzil Kalashnikov (que deve ser banido dos conflitos na África!).

Calma, tem mais antes que você se desespere e abra uma vodca. Ah, mas a Absolut… A vodca é um produto russo e ganhou fama no mundo depois da Revolução de 1917. Aliás, Leninistas e Trotskistas estão se tornando Marxistas ou Maoistas raiz, sem passagem pelas traduções.

Se a Suécia entrar na guerra contra a Rússia a gente senta pra refletir sobre esse cancelamento da Absolut.

E vamos parar de palhaçada. A palhaçaria também precisa ser ponderada, porque o Slava Polunin é russo e muito perigoso, porque capaz de se comunicar com todos os povos do planeta!

Outra mudança de suma importância: a Terra não é mais azul! E todos os Iuris do planeta, não só o Gagarin, precisam ser cancelados. E Vladimires, menos o Drácula, que é romeno nascido na Inglaterra do Bram Stocker.

E o pastel da Mexicana também vai deixar de existir: Sputnik é o caralho, aqui é Marcos Pontes, porra! Que saiu do governo Bolsonaro depois da visita do presidente à Rússia. Bolsonaro cancelado também, pronto. (Essa foi fácil.)

A geração beatnik precisa cair fora das mesas de bares, que dê um jeito de juntar as malas e seguir on the road de volta pra origem anglo-soviética do nome dado pelos críticos.

E seria bom se o Nikita Mazepin saísse da Fórmula 1 este ano, já que não vai ter corrida no país dele. Pelo menos teríamos um brasileiro no cockpit da Haas. (nota do editor: Na manhã deste sábado – 5 de março – a Haas quebrou contrato com Nikita Mazepin).

É assim que se trata o inimigo. Em todos os detalhes, porque cada influência que veio do gelo pode ter gerado disseminações no território, na cultura. Como os terroristas islâmicos, que não são russos, então não precisam ser cancelados.

Nada pode ser esquecido, nem que os Estados Unidos invadiram outro dia mesmo um país… Essa parte é melhor deixar passar, ou teríamos que cancelar a Coca-cola. Quem seria capaz de cancelar a Coca-cola? Só os russos na Guerra Fria…

Cancelem os russos!