Consta no inventário post mortem de Dona Cândida Maria Carlota, esposa do Comendador Henrique Guilherme Fernando Halfeld, falecida em 1867, o desejo de Maria Luisa da Cunha Halfeld, uma das herdeiras, de libertar o escravizado recém-nascido Benjamin, avaliado em 80 mil réis. Ele era filho da escrava Benedicta, crioula, de 18 anos, e neto de Rosa Cabinda, aleijada, 38 anos, avaliada em 400 mil réis. Em agosto de 1868, foi lavrado o termo de declaração de liberdade de Benjamin.
Três anos depois, em 1871, a Lei Rio Branco ou Lei do Ventre Livre determinava que os filhos de mulheres escravizadas nascidos a partir daquela data ficariam livres. Também garantia alforria ao escravo apto a pagar seu valor em dinheiro ao seu proprietário. Havendo recusa da negociação, o escravo poderia depositar a quantia em juízo. A Justiça providenciaria nova avaliação e, caso esta correspondesse “ao valor depositado, o cativo teria direito à manumissão”.
Assim, em 1873, Rosa Cabinda ofereceu ao seu senhor, o Comendador Henrique Halfeld, a quantia de 300 mil réis por sua liberdade. Seu argumento, segundo a professora e pesquisadora Elione Guimarães, foi de que, como já havia se passado algum tempo desde que fora avaliada em 400 mil réis, era natural que houvesse desvalorização. A proposta, no entanto, foi recusada. O proprietário argumentou que não lhe interessava desfazer-se da cativa e que ela valia mais do que os 400 mil réis.
Rosa recorreu à Justiça, provavelmente amparada por alguns dos filhos de Halfeld, que estavam com relações estremecidas com o pai, explica a pesquisadora. Nova análise do inventário comprovou a avaliação da cativa em 400 mil réis. O comendador recorreu, alegando que, “apesar do defeito físico, ela era excelente doméstica, eficiente nos serviços e hábil mucama”. No entanto, a Justiça manteve a avaliação em 300 mil réis, e Rosa conquistou sua carta de liberdade.
Cem anos mais tarde, em 1973, o então prefeito de Juiz de Fora, Itamar Franco, por meio de lei 4.496, institui o Mérito Comendador Henrique Guilherme Fernando Halfeld, em homenagem ao nome do fundador de Juiz de Fora, com a finalidade de distinguir as pessoas que tenham prestado relevantes serviços ao município. Desde sua criação, a Comenda Halfeld, maior honraria da cidade, é concedida todos os anos.
Em 2000, por ocasião do sesquicentenário Juiz de Fora, foi instituída outra homenagem, e a comenda não foi entregue. Recentemente, em 2020 e 2021, em virtude da pandemia de Covid-19, o evento também acabou não acontecendo.
Agora, exatos 149 anos após conseguir comprar sua carta de liberdade, Rosa Cabinda, em uma homenagem póstuma, foi indicada para receber a Comenda Halfeld. O fato de a distinção levar o nome da pessoa que a escravizara e relutara em entregar sua carta de liberdade mediante pagamento, gerou protesto por parte de entidades, movimentos e cidadãs e cidadãos de Juiz de Fora.
Em carta aberta à Prefeitura de Juiz de Fora, os signatários recorreram à prefeita Margarida Salomão (PT) para impedir a homenagem que, embora “bem-intencionada”, “trata-se de um equívoco”. A crítica envolve o fato de a comenda a ser entregue a Rosa Cabinda levar o nome de “seu algoz, seu escravizador” o que implicaria em “submeter sua memória a uma nova violência”.
No livreto do evento com referência a todos os homenageados, que é assinado pela Prefeitura de Juiz de Fora, a homenagem a Rosa Cabinda é justificada como “parte das várias ações que precisam ser empreendidas em nome de ressignificar a história de Juiz de Fora”. A distinção seria ainda uma forma de visibilidade. “Não se trata de reparação. Tal homenagem serve para visibilizar a verdadeira história da cidade, ainda hoje pouco conhecida por sua população, e também de viabilizar outras narrativas sobre o nascimento e o desenvolvimento do município”.
O Movimento Negro Unificado e a União de Negros e Negras de Juiz de Fora apoiaram a iniciativa também como “momento de ressignificar a história de nosso povo, fazendo com que parte dessa trajetória seja conhecida por toda a população, e dessa maneira reforçar a nossa luta por reparações”. Eles defendem o maior conhecimento da história de resistência dos negros e veem o momento como a vitória de Rosa sobre a história hegemônica. “Simbolicamente através da Comenda, Henrique Halfeld é obrigado a reconhecer a força e a grandeza de Rosa Cabinda, que traz para a atualidade o debate necessário das reparações de nossa ancestralidade”.
Na manhã dessa segunda-feira (30), em comunicado divulgado por meio de nota, a Prefeitura de Juiz de Fora propôs ao conselho responsável pela indicação dos homenageados que a outorga da comenda a Rosa Cabinda fosse adiada para novembro, como forma de a “controvérsia” ser mais bem debatida.