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“O desafio é o da economia criativa como eixo da cultura”

Para Cláudia Leitão (foto) o desafio é o da economia criativa como eixo da cultura (Foto: Divulgação)

Durante o primeiro governo Lula, de 2003 a 2006, Cláudia Leitão, professora da Uece (Universidade Estadual do Ceará), era secretária de Cultura do estado do Ceará. No primeiro governo Dilma, de 2011 a 2013, foi a idealizadora e primeira titular da Secretaria da Economia Criativa do então MinC (Ministério da Cultura). No 1° Fórum Próximo Futuro de Juiz de Fora, ela traz a perspectiva territorial para a arena temática “A Cidade Cultural: o desafio da Cultura como eixo da economia criativa”.

“Não adianta pensar setores se não pensarmos nos seus impactos na vida das populações nos seus territórios”, defende. “Por meio da cultura é possível se pensar de uma forma muito generosa o desenvolvimento territorial, numa perspectiva transdisciplinar, porque a cultura atravessa as demais pastas do governo. A cultura está presente na saúde, está presente no desenvolvimento econômico, está presente no turismo, na ciência e tecnologia, está presente na educação. Essa é a grande costura necessária a ser feita quando se é um gestor público.”

O Pharol — A proposta de debate é A Cidade Cultural: o desafio da Cultura como eixo da economia criativa”. Que desafio é esse?

Cláudia Leitão — Eu começaria invertendo essa assertiva. Na verdade, o desafio é o da economia criativa como eixo da cultura. Talvez essa ainda seja uma grande dificuldade para as políticas públicas brasileiras. Na verdade, já há algum tempo, há algumas décadas, a partir do próprio Ministério da Cultura, eu diria, com as gestões de Celso Furtado e Gilberto Gil, há uma tentativa interessante do ministério, embora ainda ainda incipiente, de trazer para a palavra “desenvolvimento” a expressão “cultura”. O que eu estou querendo dizer? Celso Furtado era um economista, um homem do desenvolvimento regional brasileiro. Ele encomendou as primeiras pesquisas sobre a economia da cultura quando foi ministro, na década de 80. Gilberto Gil, nos anos 2000, quando chega ao ministério, faz a mesma coisa. Na verdade, ele propõe uma visão tridimensional de cultura, em que estejam presentes, ao mesmo tempo, a visão antropológica, a visão cidadã e, por último, a visão econômica da cultura. Precisamos avançar e ampliar os significados da cultura para entendermos o que significam essas três dimensões. Penso que esse seminário é muito bem-vindo, pois estaremos com pessoas que têm uma larga experiência dessas discussões e que também têm as mesmas ambições, de pensar a cultura em uma perspectiva muito maior, nessa perspectiva do desenvolvimento territorial.

O Pharol — Desde o início da pandemia, a cultura foi uma das áreas que mais sofreram impacto. Não só. Sempre que há uma crise econômica, uma das primeiras áreas afetadas é a cultura. E muito disso com a anuência de boa parte da população, que, seja por incompreensão ou por carência de outros serviços públicos, questiona os investimentos públicos no setor cultural e na arte. De que forma a cultura pode contribuir para o desenvolvimento econômico das cidades e como conscientizar a sociedade sobre essa importância?

Cláudia Leitão — Esse é um desafio da educação. Na verdade, sem uma educação consequente e qualificada, continuaremos vivendo num país onde a compreensão da cultura fica sempre subordinada à lógica das indústrias culturais. Esse é um perigo e esse perigo também foi, digamos assim, advertência do próprio ministro Celso Furtado, no sentido de entender que, quando não temos direito à criatividade —portanto, não temos direito à educação —, estaremos submetidos sempre. Seremos um povo passivo, consumidor alienado de bens produzidos fora do país. Portanto, perdemos o senso crítico, não temos capacidade de fazer escolhas, como diria também um importante economista, Prêmio Nobel, o indiano Amartya Sen, que diz que liberdade é poder fazer escolhas. Sem educação não se faz escolhas, não se tem repertório. O repertório é fundamental para que se possa fazer escolhas, a liberdade reside aí.

Considero que a pandemia foi um espaço em que essa importância se tornou muito transparente, na perspectiva de que vivemos durante vários meses do consumo e da fruição de bens e de serviços culturais. As questões que precisamos trazer para o debate é: todos precisamos e queremos cultura. Acho que essa não é a questão, não é querer ou não querer, fruir ou não fruir. A pergunta é: como viver de cultura? Esse é o dilema, essa é a pergunta que se pode fazer. Realmente precisamos de políticas públicas que nos permitam desenvolver as dinâmicas econômicas dos setores culturais e criativos. Não basta criar, a questão está ligada também à distribuição. Preciso distribuir e chegar aos mercados.

A questão é que nos sistemas da economia digital, nas plataformas dos streamings, o que acontece é que o criador nem sempre é o que é remunerado. Às vezes, ele é o menos remunerado. Então, às vezes a gente pensa que as tecnologias são libertadoras, que elas vêm para oferecer mais oportunidades, mas isso nem sempre acontece. O sistema capitalista global é profundamente concentrador e desigual. Nesse sentido, é preciso mesmo pensar a partir de políticas públicas, que devem ser formuladas, implementadas e monitoradas para que se possa construir o que chamo de ecossistemas criativos, possibilidades de criação, produção, distribuição, comercialização, até exportação de bens e serviços, pensando isso a partir de princípios de retroalimentação da diversidade cultural brasileira, da inclusão, da sustentabilidade e, por que não, também da inovação.

Precisamos pensar nessa economia no território. Não adianta pensar setores se não pensarmos nos seus impactos na vida das populações nos seus territórios. Esse é um outro dilema que deve ser vencido pelos governos, mas, cada vez mais, com a participação e governança da sociedade civil. Quando a gente pensa em cidades, como é o caso de Juiz de Fora, precisamos exatamente pensar o sentido e os sentidos de uma economia dos setores criativos para uma cidade como Juiz de Fora, que é um polo importante de educação, um polo econômico e cultural. Como fazer de Juiz de Fora uma cidade cultural ou uma verdadeira cidade criativa? Penso que eis aí uma boa questão que, certamente, trataremos e aprofundaremos neste encontro.

O Pharol — Que exemplos você traz de sua experiência como ex-secretária da Economia Criativa do Ministério da Cultura e também em sua atuação no seu estado, o Ceará?

Cláudia Leitão — Quando fui secretária de Cultura do Ceará, tive a oportunidade e a sorte de ter como ministro da Cultura o Gilberto Gil e, digamos assim, a chegada do governo Lula ao poder no momento em que a cultura era tratada desde uma perspectiva muito pequena, através, simplesmente, de leis de incentivo, de renúncia fiscal. Se apoiava a cultura com a decisão das empresas, a partir dos departamentos de marketing.

Essa visão de cultura é limitada e só alimenta a indústria cultural. Sabemos que a indústria cultural nem sempre tem compromisso com a qualidade daquilo que faz e ela é, por natureza, concentradora. Isso é muito importante ser dito. 

“Uma política pública não pode ser uma política de meros incentivos fiscais ou de editais esparsos, é preciso muito mais”

Aprendi, na Secretaria de Cultura, que por meio da cultura é possível se pensar de uma forma muito generosa o desenvolvimento territorial, numa perspectiva transdisciplinar, porque a cultura atravessa as demais pastas do governo. A cultura está presente na saúde, está presente no desenvolvimento econômico, está presente no turismo, na ciência e tecnologia, está presente na educação. Essa é a grande costura necessária a ser feita quando se é um gestor público.

Na Secretaria da Economia Criativa, o desafio foi ainda maior, porque era uma tentativa de dar institucionalidade a essa discussão, que no Brasil ainda é muito sazonal, que é a discussão da economia dos bens e dos serviços simbólicos. Precisamos aprofundar essa discussão sem medo, sem preconceitos. Mais: precisamos aprofundar a discussão da economia dos setores culturais e criativos do Brasil sem nos subordinarmos a um processo colonizatório, ou seja, a hegemonia de conceitos do hemisfério norte.

Digo isso porque é muito importante decolonizarmos os conceitos, as categorias. Às vezes repetimos expressões, categorias, conceitos, significados que não são adequados para a nossa realidade do hemisfério sul. Aqui penso no Boaventura de Sousa Santos, que fala de uma epistemologia do Grande Sul. O Brasil compõe, com a América Latina, a África e o Caribe, essa perspectiva do sul. É nessa perspectiva que poderíamos liderar um modelo de desenvolvimento econômico diferente do modelo do norte. É muito importante pensarmos isso num contexto de globalização e, ao mesmo tempo, num momento de nova estruturação da ordem geopolítica mundial. Estamos num momento muito adequado para pensarmos como é que o Brasil poderá, a partir do ano que vem, retomar uma liderança num novo desenvolvimento, muito mais afinado com a Agenda 2030 do desenvolvimento sustentável, e como é que a cultura pode ser um eixo estratégico para esse desenvolvimento.

O Pharol — O historiador e escritor carioca Luiz Antônio Simas faz uma distinção entre evento da cultura” e cultura do evento”. Segundo ele, o evento da cultura é orgânico, decorre de vivências comunitárias, tradição acumulada, ritos de pertencimento, etc.”. Por sua vez, a “cultura do evento”, para ele, “é aquela que esvazia de sentidos os ritos de pertencimento e espetaculariza tudo em nome apenas da circulação de capital, sem organicidade”. Você sente essa distinção? Embora eventos possam ser lucrativos, a cultura do evento” é prejudicial ao pensamento da cultura como eixo da economia criativa a longo prazo?

Cláudia Leitão — Essa questão do evento é extremamente entranhada na gestão pública brasileira, numa decisão sempre tomada por gestores, sejam prefeitos, governadores ou secretários, que realmente tratam a cultura nessa perspectiva da indústria do espetáculo, especialmente da indústria musical. Isso, sem dúvida, é um desserviço para o território. É uma questão que necessita mesmo ser enfrentada através de políticas públicas, e não imaginarmos que essa cultura do evento vai desaparecer se não houver uma construção e uma participação social, uma governança que seja capaz de avançar no processo democrático de uma concertação que venha do território, que venha de baixo para cima e não seja decidida no gabinete do prefeito, do governador ou do presidente da República.

Essas questões são mesmo importantes. Nós alimentamos e, tradicionalmente, as leis de incentivo alimentam, sem dúvida, de forma contínua, a indústria cultural, e muito menos apoiam os pequenos trabalhadores da cultura, os pequenos empreendimentos criativos. Esses acabam ficando outsiders, marginais, não interessam aos gestores de plantão.

Só podemos enfrentar essa cultura do evento se, realmente, formularmos políticas públicas a partir de novas governanças, de uma nova vontade política que realmente trate a cultura como um fator de desenvolvimento do território, numa perspectiva ampla, de vários princípios que precisam ser considerados, inclusive, mensurados por novos indicadores. Um território criativo é um território que não admite a desigualdade, é um território que não admite a concentração, é um território que se preocupa com a sustentabilidade em todos os sentidos. Sustentabilidade que não é só econômica, mas que é social, política, ambiental e cultural. Então, não podemos tratar a cultura do lugar da cultura do evento. Esse é um grave problema que envolve, também, a atividade turística, a indústria do turismo, e que é fruto de muitas insustentabilidades e que, sem dúvida, é uma pá de cal sobre o trabalho dos artistas e dos fazedores de cultura locais.

O Pharol — As cidades, como microcosmos do mundo, têm centros e periferias. Mas muitas dessas periferias são, elas mesmas, centros culturais bastante efervescentes e distintos do grande centro urbano. Como um gestor deve, visando ao desenvolvimento econômico pleno, integrado e sustentável, lidar com essa multiplicidade cultural e essa relação entre diferentes centros e periferias?

Cláudia Leitão — O conceito de centro e de periferia perde muito do seu valor simbólico se pensarmos, como diria o Castells, ou mesmo Bruno Latour, que vivemos, nas sociedades contemporâneas, em rede. Vivemos numa sociedade de rede onde são vários os atores que a compõem. Atores humanos e não-humanos, objetos, ideias, ícones, imagens… Toda essa rede está presente no território e tem uma força maior ou menor para criar conexões, para produzir sinergias e sociabilidades.

Acredito imensamente que, na visão de uma sociedade de rede, há um desaparecimento dessa perspectiva do centro. Precisamos realmente avançar nessa compreensão de que, para combatermos as mazelas de um sistema-mundo capitalista, neoliberal, global, precisamos, cada vez mais, fazer a diferença e permitir e estimular as diferenças no território. É no território que a diversidade deve acontecer e esse território tem que ser heterogêneo. Precisamos de conhecimento heterogêneo, de visões heterogêneas. Temos que abandonar as visões hegemônicas, inclusive, as da universidade. Precisamos de um conhecimento muito mais amplo, generoso, heterogêneo, que seja capaz de produzir recursos, de proteger bens comuns, de garantir participação de todos. Precisamos voltar a uma visão do território de uma forma cada vez mais forte, efetiva e eficaz.

Essa é uma forma de darmos sustentabilidade às regiões, aos biomas, ao planeta. Porque, numa visão global, num modelo único, no pensamento da indústria da comunicação, da cultura, a tendência é vivermos sempre a aprofundarmos as desigualdades socioeconômicas, avançarmos na precarização do trabalho, criarmos consumidores passivos e alienados, termos uma inserção pequena junto aos países, perdendo também no nosso soft power.

O Brasil, neste momento, vive exatamente esse quadro de destruição, um momento muito difícil, mas acredito muito que, nas crises, as soluções vêm e elas serão sempre frutos da nossa criatividade. A criatividade também é fruto da necessidade. Quanto mais necessidade temos, mais somos estimulados a uma visão criativa do mundo e essa criatividade implica alteridade, diversidade de olhares, de participação.

O papel do território é cada vez mais importante e, nesse sentido, quanto menor o mundo territorial, menos sentido faz essa diferença entre centro e periferia. É no território onde a vida acontece, é no território onde se produz conhecimento, onde se produz soluções, onde se produz cultura, e é nessa perspectiva que as políticas para a cultura devem ser construídas, não pensando nessa lógica de centro e periferia e de hegemonia e subordinação. Mas, pelo contrário, numa visão de que é na pequena dimensão territorial, é numa sociedade de rede, onde você pode reinventar os significados da própria palavra desenvolvimento.