Juiz de Fora deu um importante passo em direção ao protagonismo nas discussões acerca da economia criativa. Inaugurado nesta terça (26), o primeiro “Fórum Próximo Futuro” vai até a quinta (28), reunindo grandes nomes do Brasil e do exterior para troca de conhecimento e experiências relacionados à “nova economia”.
Iniciativa da Prefeitura de Juiz de Fora, do Sebrae Minas e Instituto Fábrica do Futuro (Cataguases-MG), o evento tem o intuito de ser um marco na construção de uma nova realidade para a cidade, baseada em uma das missões elencadas no “Plano de Desenvolvimento Sustentável e Inclusivo”, lançado pelo Executivo no ano passado: a de transformar a cidade em um “Polo Internacional de Economia Criativa”.
A programação pode ser conferida no site. A abertura foi marcada por solenidade e pela conferência inaugural “A cidade reinventada: o cuidado, a imaginação e a inovação local”, com o secretário de Desenvolvimento Sustentável e Inclusivo, da Inovação e Competitividade, Ignacio Delgado; e a jornalista, ativista e crítica de cultura, Marta Porto, também parceira técnica e consultora do Fórum.
Algumas horas antes de abrir as discussões, Marta conversou com O Pharol sobre possibilidades de reinvenção das cidades utilizando sua matéria-prima mais rica: a imaginação das pessoas comuns. Ela abre uma série de entrevistas realizada pela equipe de O Pharol com palestrantes do evento.
O Pharol: O título da conferência inaugural do Fórum foi “A cidade reinventada: o cuidado, a imaginação e a inovação local”. Como você considera que esses três pilares podem se relacionar de uma maneira plausível para reinventar as cidades?
Marta Porto: Eu acho, primeiro, que a gente está vivendo a era do cuidado. É um cenário quase distópico, de aumento da desigualdade e um número recorde de pessoas em situação de refúgio, tendo que sair dos seus lugares de origem por questões das crises climáticas, da violência… E aí você tem um cenário ainda pandêmico, ou seja, você cada vez mais precisa ter na ideia do cuidado um vértice, inclusive econômico. Isso significa olhar para quais são essas modalidades possíveis de desenvolvimento, de empregabilidade, que se relacionam com a nossa era. Às vezes, a gente fica muito aprisionado em paradigmas ultrapassados. Então, reinventar a cidade significa, do meu ponto de vista, primeiro olhar para o que esse contexto que a gente vive hoje, que não é só local, é num contexto global, ele está apontando. Essa é uma primeira coisa, a segunda é olhar para as pessoas. Então, é colocar no centro do desenvolvimento pessoas comuns. A cidade tem que ser uma cidade capaz de acolher as várias etapas de vida do indivíduo. Ela não pode ser um lugar inóspito e hostil para as pessoas como nas últimas décadas. Se você está pensando nesses três vértices (cuidado, imaginação e inovação), você vai percebendo que a própria cidade produz um grau de talentos, de inovações, que muitas vezes as lideranças não são capazes de olhar e absorver. Então, o que são projetos inovadores? Os que vão surgindo todo dia, coisas que estão na cabeça das pessoas, que estão nas universidades, que estão nos pequenos empreendimentos, as tecnologias sociais que surgem no cotidiano.
O Pharol: E nessa ideia de futuro, é possível pensar que cada cidade tem suas singularidades e potencialidades no que diz respeito a estas tecnologias sociais, certo?
Marta Porto: Sim, e aí vem a questão da inovação. No caso de Juiz de Fora, vocês têm uma universidade incrível, que é uma das melhores do país, que produz ciência, pesquisa e uma série de coisas. Ao mesmo tempo, é uma cidade que tem a memória e as condições para rever talvez um passado complicado, ligado à escravidão, a desigualdades, ligado a uma série de chagas. Colocar pessoas no centro é abraçar a ideia de que pessoas inovam porque são capazes de imaginar, com modelos e formas diferentes daquelas que a gente tradicionalmente está acostumado a enxergar. E isso é que faz com que as cidades caminhem. Toda a reinvenção é baseada em gente.
O Pharol: E de que maneira é possível que ações cotidianas ajudem a construir essa cidade no presente, para que ela não fique ancorada sempre num futuro que está por vir?
Marta Porto: Existem experiências brasileiras em cidades menores e maiores, não importa onde, em que se pode experimentar uma ideia de que a participação social não é algo restrito ao momento de uma eleição. Pelo contrário, a participação é um processo contínuo e cabe às lideranças, inclusive as lideranças sociais, definirem de que maneira ela pode ocorrer. Não tem como você oxigenar uma cidade só com base num conceito de empreendedorismo, por exemplo, ou num conceito de startup. Não é por aí. Porque isso está sempre ligado a pessoas que, de alguma maneira, já têm uma ação organizada, um desejo, um interesse organizado para interagir com os poderes públicos e com as lideranças da cidade. A grande descoberta, quando a gente fala de imaginação, quando a gente fala de buscar inovação na base da sociedade, é quando você abre uma escuta qualificada e comunitária.
O Pharol: E como seria essa escuta?
Marta Porto: Posso dar um exemplo. Uma carência evidente em todas as cidades brasileiras é como cuidar dos filhos pequenos. A maioria das mães, sobretudo as mais pobres, tem uma dificuldade muito grande porque não tem creche, porque não tem uma rede de proteção. Ao mesmo tempo, existem hoje milhares de mulheres que cuidam dos filhos dos outros sem que isso seja visto pelo poder público. Então, em que medida isso é um mercado de trabalho? Em que medida eu posso capacitar essas pessoas para elas terem uma melhor qualidade na sua forma de cuidado? Como é possível subsidiar essas pessoas e esses espaços onde essas crianças convivem? A partir de uma tecnologia social e de uma tecnologia comunitária como esse cuidar das crianças, você pode desenhar ações e fazer com que isso seja uma inovação produtiva. E também que gere renda, gere trabalho, gere qualidade de vida, gere bem-estar. Aí a gente pode falar que estamos em direção a uma economia do cuidado. E tem muitas iniciativas como essas mapeadas mundo afora. Eu acho que é uma questão de a gente ter uma certa humildade, às vezes, para conseguir olhá-las de uma maneira tranquila e ver o que a gente pode aprender com cada uma delas.
O Pharol: E como se pode pensar as periferias nesse contexto de cidade?
Marta Porto: Em primeiro lugar, precisamos parar de pensar a periferia como problema, como carência, como espaço de violência. A gente tem que mudar as categorias de reflexão sobre esses territórios. Entender as periferias como espaços de construção, de cidadania que também têm maneiras próprias de pensar moradia, as relações de convivência…Acho que a gente tem que parar de falar de inclusão e tem que começar a falar desse desenvolvimento comunitário. É evidente que as periferias têm o problema de carência de serviços. Mas não é um problema do espaço em si, isso não está alocado no morador que vive ali. É um problema dos centros de poder. Essa é uma inversão importante que a gente tem que fazer ao pensar nos espaços periféricos: há um centro de poder que não é capaz de prestar serviços para cidadãos que trabalham e contribuem com os seus impostos para que a cidade, de uma maneira geral, viva melhor. Uma segunda questão está na necessidade de compreender a periferia como um caldeirão de inovações socioculturais no que diz respeito às maneiras de pensar, de coabitar, de existir, de se relacionar, que em muito podem contribuir para um modelo de desenvolvimento muito mais rico e muito mais justo. Terceiro, eu acredito que a gente talvez tenha que parar de pensar um pouco nessa relação entre centro e periferia e começar a olhar a cidade como um conjunto de espaços socioculturais comunitários diferentes.
O Pharol: E é plausível transpor este modelo centro-periferia mesmo num país tão desigual como o Brasil?
Marta Porto: É uma questão que parece utópica, mas em certa medida, acontece. Paraisópolis foi uma das comunidades, um dos bairros de São Paulo que mais contribuíram para a prevenção da pandemia. Eles inventaram uma maneira de fazer isso. Os moradores alugaram casas que estavam desabitadas, criaram centros de acolhimento para idosos e pessoas com deficiência que não tinham condições de ficar nas suas casas, criaram uma rede de ambulâncias locais e conseguiram recursos para melhorar a qualidade sanitária dos espaços. E isso é uma coisa que está ficando. Eles deram um exemplo, não só eles, mas favelas no Brasil inteiro. Então, isso é uma supertecnologia que a gente tem que olhar como ferramenta de desenvolvimento sócio econômico. Então, esse lugar não é exatamente periferia, é um centro inteligente que produz formas singulares e que tem contribuições para dar para o conjunto da cidade. Mas precisa não só que ser ouvido, mas também valorizado. Isso que a gente acaba não fazendo e é um pouco da nossa herança escravocrata.
O Pharol : Um dos grandes temas de seu trabalho é a imaginação como matéria-prima da arte, da cultura, da política, enfim da vida social. De que maneira, a seu ver, essa potência da imaginação foi afetada com o avanço do conservadorismo, da violência e do reacionarismo que o mundo e em especial o Brasil vem enfrentando nos últimos anos? Como superar isso?
Marta Porto: Eu já vivi em todos os lugares, e o Brasil é um país maravilhoso, sabe? Eu acho que o Brasil precisa romper com esse pacto patrimonialista oligárquico que o mantém até hoje, que elimina o povo da sua lógica. O povo brasileiro é um povo de imaginação pura. O Brasil é um país que tem uma sofisticação artística e cultural que poderia utilizar isso como uma das suas formas mais potentes de desenvolvimento socioeconômico. E tem outro aspecto: a capacidade que o Brasil e os brasileiros têm de sobreviver a essa realidade massacrante que é imposta a nós. Ela é a base dessa imaginação criadora do país. Isso tudo o que a gente está falando aqui é essa capacidade de se reinventar todo dia, de reinventar suas formas de sobrevivência, de reinventar as maneiras de cuidar dos outros. Então, evidentemente, o que a gente está passando é um dos piores períodos que o Brasil já viveu. Quando praticamente 30% da população ainda se agarra a um modelo civilizatório de relação social. Quer dizer, é uma gente que gosta de andar armada e entende isso como uma ideia vencedora que não deveria ser superada. Mas acredito que o Brasil tem vacinas de alguma maneira contra isso, porque temos uma capacidade de invenção impressionante. Não vai ser um processo rápido, mas esse momento histórico tão difícil vai ser devorado de maneira antropofágica, para virar potência criativa, reinvenção.