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Entre o MST e Cambahyba, não há escolha difícil

MST ultrapassa 6 mil toneladas de alimentos doados durante a pandemia (Foto: MST/Alagoas)

I.

Não lembro exatamente o que ele disse, mas foi algo que reproduzi na matéria que escrevi naquela noite. Uma frase tão boa que fez minha editora substituir o verbo que eu tinha escolhido (afirmou? declarou? um mero disse?), por ironizou. Ela tentou fazer um elogio. Ironia, para minha editora (e, admito, também para mim), era a figura de linguagem dos inteligentes. Ele, porém, discordou, porque, afinal, nas palavras dele, não tinha ironizado coisa nenhuma. No dia seguinte, da tribuna da Câmara Municipal, enquanto eu estava sentada no plenário do Palácio Barbosa Lima, como fazia praticamente todos os meus dias de repórter de Política, proferiu barbaridades que não ouso recordar. Minha memória guardou uma única frase: “tem essa carinha de anjo, mas a mão é do capeta”. Era um vereador, na época filiado ao Partido Social Cristão. Pensando bem, a metáfora — se é que ele aceitaria o fato de ter usado uma — até que fez jus à afiliação.

II.

As pontas dos meus dedos são capazes de toques muito suaves, mas também são a única arma que eu tenho.

III.

Numa manhã de sexta-feira, eu estava sentada no gabinete da Presidência daquela mesma Câmara, com a assessora da Casa às minhas costas, tentando entrevistar o chefe do Legislativo na ocasião sobre os gastos dos vereadores (a pauta dos gastos é recorrente, uma espécie de fetiche do jornalismo político). Num determinado momento, apontando para a assessora, ele ordenou que ela ligasse imediatamente para meu editor-geral e marcasse uma reunião. Para quê? Discutir como a empresa em que eu trabalhava se achava em condição de propor uma reportagem como aquela.

Ao sair do Barbosa Lima, telefonei para a editora (anterior à da ironia) ainda dos degraus de entrada. “Vai para casa”, ela disse. “Não chegue à redação antes das 16h”. Quando cheguei, no fim da tarde, a tal reunião tinha acontecido. “Disse para o presidente que, quando ele quiser solicitar algo, tem que vir conversar antes comigo”, me falou o editor-geral. “Mas, a partir do momento que intimidou minha repórter, a matéria vai sair.”

IV.

O então presidente da Câmara, na época, era filiado ao PTB. O PTB que já tinha sido de Getúlio Vargas, que já tinha sido de João Goulart, que já tinha sido de Leonel Brizola. O PTB que, no entanto, por razões óbvias (e outras nem tanto), não era mais de nenhum deles havia muito tempo.

O fato é que o então presidente da Câmara “pertencia aos quadros” (essa expressão pomposa!) do Partido Trabalhista do Brasil. E, no seu gabinete, pensava que tinha o direito de amedrontar trabalhador.

V.

Outro presidente da Câmara, do antigo PMDB, ligou no meu celular ao meio-dia de um domingo, enquanto eu almoçava, para também se queixar de uma reportagem, dessa vez sobre os ganhos dos parlamentares (e, é claro, os dele próprio). “Vou conversar com o editor-geral”, anunciou. “Tudo bem, pode conversar”, foi o que respondi.

Tempos depois, o chefe do Legislativo que o sucedeu, do extinto PRB (atual Republicanos), fez um comentário bem ao lado da escadaria principal: “Sua empresa não deveria mexer com isso tão perto de votarmos o projeto que interessa a ela…”. Esclareci-lhe que eu não trabalhava para a empresa à qual ele se referia.

VI.

Antes de se tornar escritor de ficção (ficção?), Bernardo Kucinski já era jornalista e professor de jornalismo internacional da USP (Universidade de São Paulo). Também tinha sido militante do movimento estudantil, preso e exilado durante a ditadura civil-militar, irmão de Ana Rosa Kucinski Silva, torturada e assassinada na Casa da Morte de Petrópolis e incinerada nos fornos da Usina Cambahyba, em Campos dos Goytacazes, no estado do Rio de Janeiro.

Em seu romance “K.: relato de uma busca”, que trata da procura de um pai pela filha desaparecida, o escritor registrou, como epígrafe: “Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu”. Na literatura, isso é incrível. No jornalismo, nem tanto.

VII.

Numa conversa que tivemos, tentei argumentar com Kucinski sobre como os jornalistas ficam à mercê do péssimo mercado da profissão, dos salários baixos, da falta de emprego. “Não é só isso”, ele retrucou. “É pavloviano. Muitos aprendem que deixam de ganhar uma notinha de canto de página e passam a ganhar uma manchete se disserem exatamente o que o dono do jornal e a a elite da qual ele faz parte querem ouvir.”

Ouvindo-o, pensei no no primeiro dia das greves simultâneas dos magistérios municipal e estadual, quando a manchete que uma terceira editora queria era a do número de crianças e adolescentes que tinham ficado sem aula. Disse que não faria isso, que era preciso respeitar um movimento legítimo, que de jeito algum aquela seria a angulação que eu daria à matéria, não naquele primeiro dia de paralisação. “Se sair assim, não sai com a minha assinatura”, foi o último apelo. Não saiu, mas o caso ilustra bem: editores são jornalistas, como eu. Mas, num cargo de chefia, lembram-se constantemente de que greve de professores só vende jornal se o veículo incinerar a categoria grevista no fogo da fúria da população.

VIII.

Sindicato dos Intelectuais Proletários Militantes da Imprensa. Esse era o nome do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Juiz de Fora quando a entidade surgiu, como a primeira do país. A diretoria recente fez uma camiseta com esse título, seguida da frase “Você nunca mais vai escrever (ou falar) sozinho”. Tenho muito orgulho de vesti-la, embora nem sempre me sinta tão orgulhosa assim da minha profissão. Tampouco tão acompanhada assim. Porque nós, jornalistas, temos muito pouca consciência de classe e muita dificuldade de nos reconhecermos como trabalhadores.

IX.

O saudoso jornalista e escritor Fausto Wolff dizia: “entre o banqueiro e o bancário, estou sempre ao lado do bancário”.

X.

Quando, no último domingo (28) o futuro ex-presidente atacou a apresentadora e entrevistadora do Roda Viva, ao vivo, em pleno debate entre os presidenciáveis, houve nisso, como não deixou de ser dito, muito de misoginia. Assim como cada um dos vereadores que tentaram me acossar no passado, de diferentes formas, não fariam o mesmo — ou não da mesma maneira — se estivessem falando com um homem.

No entanto, além de misógino, o gesto também evidencia o quanto a imprensa pode ser vítima das relações perniciosas que cultiva. Não escrevi ditadura civil-militar, ainda há pouco, fazendo questão do adjetivo composto, à toa. Tanto o golpe de 1964 quanto o regime de terror que veio dele foram sustentados por braços civis, entre os quais, a despeito de resistências, censuras e herzogs, o da imprensa. Houve cumplicidade. Conivência. Conveniência.

Do mesmo modo, o futuro ex-presidente pode ser herdeiro legítimo de Seu Percy e dona Olinda, mas também é filho bastardo da grande (mas nem sempre grandiosa) mídia.

XI.

Fake news é uma expressão relativamente nova, mas há muitas outras faces para a desinformação.

XII.

No dia em que me despedi da cobertura política da Câmara Municipal, há quase dez anos, o vereador do PSC me fez um elogio. Segundo ele, apesar de nosso entrevero, eu merecia o reconhecimento de, num momento em que ele precisou, ter-lhe emprestado uma caneta. Na cabeça dele, é possível, entreguei-lhe, por um instante, minha própria arma de guerra.

Talvez eu tenha dado sorte de parar ali. Ou talvez não. Fosse obrigada a acompanhar a legislatura em que um parlamentar do PTB (o que fizeram com o trabalhismo, afinal de contas?!) vai a um evento sobre liberdade religiosa, realizado por integrantes do MNU (Movimento Negro Unificado) e do plantio solidário promovido pelo MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), só para provocar os presentes e, em sequência, ameaçá-los com a polícia, provavelmente eu não seria tão republicana.

XIII.

Em junho do ano passado, uma das fazendas pertencentes ao complexo da antiga Usina Cambahyba foi ocupada por 300 famílias organizadas MST. Aquela mesma Cambahyba, onde se incineraram corpos de vítimas assassinadas durante a ditadura; este mesmo MST, que doa centenas de toneladas de alimentos a quem, embora o futuro ex-presidente nunca tenha visto, tem, sim, fome.

O jornalismo é imprescindível numa democracia, mas já passou da hora de ele saber reconhecer essa diferença.