No mês de setembro de 2022, o Brasil comemora seu bicentenário da independência. Ao longo de 200 anos de história, desde sua emancipação política, uma série de movimentos sociais, políticos e culturais transformou-se em sinônimo de luta e resistência em torno de um ideal de nação e de Estado que expressasse os anseios dos mais diversos segmentos. Todavia, prevaleceram projetos hegemônicos de poder que alijaram da esfera pública e excluíram de direitos básicos a grande maioria dos brasileiros, sobretudo negros, indígenas e mestiços. Diante de um quadro adverso, desfavorável às camadas populares, reações contra os levantes de indignação e revolta, tanto no Império quanto na República, por vezes seguiram a tônica da intolerância e violência. Duros golpes perpetrados pelos donos do poder às camadas populares, que não se entregaram ao longo da história e enveredam pelo século XXI dispostas a não sucumbirem e jamais temerem as ameaças e atrocidades sofridas.
A Independência trouxe consigo um projeto de Brasil sob a mesma base econômica e social assentada sob alicerces da lógica escravocrata e patriarcal conciliada às suas mazelas. Um Estado monárquico e constitucional conduzido por um herdeiro da família real portuguesa com propósitos absolutistas endossou o projeto imperial, vitorioso na manutenção da integridade territorial. Mesmo diante de ameaças de ruptura, tal como a Confederação do Equador, de 1824, onde os rebelados contra o autoritarismo de D. Pedro I pleitearam uma República independente no Nordeste. A mesma sorte não obteve o imperador com a questão da Cisplatina. Derrotado, assistiu a conquista da independência da ex-colônia espanhola em 1828, proclamando a República Oriental do Uruguai.
Negligente quanto às atenções dispensadas às demandas da população e às singularidades regionais, o novo país manteve intactas as estruturas fundiárias, voltadas para o mercado exportador, sob o manto perverso da escravidão. A libertação das amarras coloniais não significou internamente a liberdade para milhões de brasileiros e africanos, mantendo sob a condição de propriedade privada seres humanos destinados ao trabalho compulsório nas lavouras, serviços domésticos, atividades urbanas e ofícios dos mais diversos. Abordar o problema da escravidão no século XIX tornava-se uma “questão espinhosa” cada vez mais vergonhosa e embaraçante para o Brasil no plano internacional e insustentável internamente. Entre as elites pairava o medo branco e o pavor do haitianismo, ensaiado na Bahia em 1835 com a Revolta dos Malês. Com a abdicação de D. Pedro I em 1831, o período regencial se vê às voltas com uma onda de insurreições que tomam o território nacional.
No Pará se assiste a Cabanagem, a maior revolta popular da nossa história, resistindo de 1835 a 1840. No Maranhão, os balaios afrontam as elites locais entre 1838 e 1841. Em Salvador, como destacado, são os escravizados africanos mulçumanos que tramam a tomada do poder e a formação de uma República negra. No Sul, os farroupilhas rompem com o Império em 1835 e proclamam a República Rio-Grandense, cuja reintegração territorial é restaurada somente em 1845, cinco anos após a antecipação da maioridade do herdeiro do trono, D. Pedro II. Aliás, seu reinado gozou de um período relativamente tranquilo nas décadas de 1850 e 1860. Sanada a questão farroupilha, o jovem soberano enfrentaria ainda a Praieira, última das revoltas provinciais, movimento de caráter político e social que eclodiu em Recife entre os anos de 1848 e 1849.
O Brasil, último país das Américas a abolir política e juridicamente a escravização em 13 de maio de 1888, persiste com toda a sorte de discriminação, preconceito e exclusão de negras e negros que, desvelado o manto perverso da democracia racial, escancara sem qualquer pudor um racismo visceralmente enraizado. O racismo é uma marca indelével da sociedade brasileira. Dele se alimentam as classes privilegiadas no interior das relações sociais, políticas e econômicas. Combater o preconceito e a discriminação contra a população negra e indígena significa afrontar o sistema, subverter a ordem vigente e, portanto, descolonizar saberes, afrontar o sistema e suas relações de poder.
Com o advento da República, novas perspectivas emergem voltadas à construção da cidadania e o aceno às demandas sociais aparece na pauta das correntes mais progressistas e radicalizadas do novo regime. No plano jurídico, os preceitos da res publica substanciam o direito dos cidadãos de reivindicar do Estado atenção às suas demandas. De garantir as liberdades civis e estender os direitos políticos sem qualquer distinção de renda e cor entre homens maiores de 21 anos e alfabetizados. Quanto às mulheres, ficam alijadas de exercer sua cidadania plenamente, assim como os analfabetos. Da Constituição de 1824 até o ano de 1932, quando é instituído o Código Eleitoral, são percorridos 108 anos para que a mulher conquiste seu direito ao voto, de eleger e ser eleita. Hoje se passaram 90 anos desta conquista, fruto de sua luta e resistência, consagrada pelo posto mais alto de um mandato eletivo, a Presidência da República, com Dilma Rousseff.
Sob o novo regime, o modelo político eleitoral se altera e mecanismos de cooptação e controle do voto são aperfeiçoados, sem se desfazer, mas aproveitando as estruturas arcaicas de nossa cultura política sustentada nas relações de troca e dependência e no mandonismo patriarcal. O voto de cabresto e o curral eleitoral tornam-se vocábulos políticos frequentemente satirizados em revistas e periódicos de época, estampadas em charges repletas de humor e criticidade. É o plano de sustentação da ordem vigente cujo coronel era a base de sustentação da política dos governadores meticulosamente articulada para atender os propósitos de oligarquias regionais, sobretudo de São Paulo e Minas Gerais.
Na Primeira República, a violência, a exclusão e a desigualdade são emblemas da discriminação racial, da xenofobia e do paternalismo e hostilidade aos indígenas, dependendo da forma como determinados povos respondiam às políticas indigenistas. A reação às arbitrariedades políticas e ao descaso com questões de cunho social se manifestaram nas cidades, entre populares, operários e militares e no interior do país. O Movimento de Canudos e de Contestado, a Revolta da Vacina, a Revolta da Chibata, o Movimento Operário, a fundação do Partido Comunista do Brasil (PCB), a Revolta do Forte de Copacabana, o Modernismo e a Semana de Arte Moderna, a Coluna Prestes-Miguel Costa e o Tenentismo ditaram o tom da rebeldia popular e do inconformismo com a República das oligarquias.
A luta e resistência dos trabalhadores da Primeira República rompe a década de 1930 e se consagra com a conquista de direitos efetivamente consolidados pelo Estado. No campo político, a Revolta Constitucionalista de 1932, o Integralismo e a Intentona Comunista de 1935 engrossam o caldo efervescente das disputas ideológicas rivalizando liberalismo conservador, a extrema direita, o militarismo, o trabalhismo e a esquerda comunista. Nesse cenário conturbado, a Constituição de 1934 sucumbe diante de um golpe de Estado que implanta uma ditadura aos moldes dos regimes fascistas da Europa e conserva Getúlio Vargas no poder até 1945.
Nossa frágil democracia, instaurada após a queda de Getúlio Vargas não resistiria por muito tempo, vindo a sucumbir depois de um breve período cambiante, em março de 1964. Os anos conturbados das décadas de 1950 e 1960, mesclaram nacional-desenvolvimentismo, expansão industrial e crescimento urbano com arroubos autoritários imersos em um contexto de polarização ideológica e rivalidades políticas em meio ao fortalecimento dos movimentos sociais no campo e nas cidades. Mobilizações de estudantes através da UNE, de trabalhadores organizados em sindicatos e correntes progressistas compostas de intelectuais e artistas colocam-se à disposição para reivindicar reformas de base. Nesse espaço de tempo, o projeto conservador-autoritário gestado no interior da caserna, gabinetes e escritórios é alçado ao poder por vias antidemocráticas. Um golpe de Estado destitui João Goulart da presidência da República e inaugura uma ditadura militar que sufocaria o país por longos 21 anos. Os anos rebeldes entra em cena para contrapor-se aos anos de chumbo.
A ditadura militar com sua política de perseguição e silenciamento aos opositores do regime alcança se extremismo com AI-5, de 1968, no cerceamento das liberdades civis e políticas. Não obstante toda repressão estatal contra os movimentos sociais, dos trabalhadores, indígenas e negros, suas vozes não se calaram diante dos reveses. Cismaram em permanecer na luta, aliadas às vanguardas intelectuais e artísticas posicionadas contra o regime ditatorial que rompe a década de 1980 esgotado, muito embora com força suficiente para conduzir o processo de “distensão lenta, gradual e segura”. São tempos da retomada do ambiente democrático, das mobilizações políticas pelas Diretas Já, do pluripartidarismo, das centrais sindicais, da organização do trabalhadores sem-terra, das pautas identitárias robustecerem.
A Constituição de 1988, logo denominada de “Constituição Cidadã” é um reflexo das pressões de diversos segmentos organizados em torno do combate às injustiças, em defesa de direitos básicos e no reconhecimento de dívidas históricas com os segmentos minoritários. Passados 34 anos de sua promulgação, a luta e a resistência do povo negro e indígena mantem-se atuante, tanto no sentido de assegurar suas conquistas, como também na militância constante em prol do respeito à diversidade e no combate a toda espécie de opressão.
Da insurreição dos negros malês às fugas do cativeiro convertidas em quilombagens; dos levantes da senzala, como os de Preto Cosme, Ventura Mina e Manuel Congo, contra a casa grande, aos atos de rebeldia manifestos na cultura dos guetos, das periferias e favelas; dos movimentos abolicionistas de José do Patrocínio e Luiz Gama à Frente Negra Brasileira de Isaltino Veiga dos Santos e o Teatro Experimental do Negro de Abdias Nascimento; da literatura de Machado de Assis e Lima Barreto ao quarto de despejo de Carolina Maria de Jesus; do samba e do funk vindo dos morros ao rap suburbano e contestador de um Racionais MC’s; dos romances de Maria Firmina dos Reis, da poesia de Solano Trindade, da literatura de Conceição Evaristo; do requinte malicioso e envolvente dos dribles de pés pretos em terrões e várzeas que fizeram daqui o país do futebol. A ancestralidade de Roza Cabinda e Esperança Garcia se faz cada vez mais presente e mobilizada os movimentos negros na luta pela afirmação de direitos, principalmente o direito de existir como cidadão em sua plenitude.
Neste bicentenário da Independência, a mensagem que fica exalta o exercício do pensamento crítico e a reflexão sobre a história do Brasil e o papel dos diversos grupos étnicos e sociais na construção da nação brasileira e de nossa cidadania. As reverências deste artigo dirigem-se às mulheres e homens que derramaram muito suor e sangue por uma causa, que não se entregaram e venderam muito caro a derrota, pagando em muitos momentos com a própria vida. Inscreveram seu nome na história por sua trajetória de lutas, conquistas e resistência deixando um lastro significativo para as gerações futuras e que continuam 200 anos depois em busca de sua efetiva emancipação.