Colunas

Ele vai voltar para mim

I.

Eram 5h05 desta terça-feira, 20 de setembro de 2022, quando ele cantou. Costumava ser comum. O dia começava a raiar, às vezes nem isso, e ele dava início à música. Na primeira vez, na adolescência, quando eu ainda morava com mãe, padrasto e irmãos, identifiquei-o sem vê-lo, só pelo ouvido, porque seu canto era igualzinho à melodia triste da velha canção cuja letra falava de alguém com saudade de casa. Nessa época, quando finalmente amanhecia, o trinado dava lugar ao batucar do bico na vidraça da janela. Cheguei a abri-la numa manhã, num ato de desespero para que ele me deixasse dormir. Demorei a entender que não era a minha a casa da qual o sabiá sentia falta.

II.

A janela do meu quarto de adolescente se abria para um terreno baldio, onde algumas árvores, ainda que poucas, tornavam plausível que um sabiá vivesse ali. Esse outro sabiá, contudo, que cantou às 5h05 da manhã desta terça-feira, não tem copas de árvores sobre as quais se abrigar. A sacada do meu quarto de hoje, no 15° andar de um bloco de concreto cercado de outros blocos de concreto no centro da cidade, deve tornar a paisagem ainda mais inóspita e melancólica aos olhos de um passarinho. Ainda assim, na vizinhança nada hospitaleira da sacada do meu quarto de agora, ainda na semi-escuridão da alvorada, ele cantou.

III.

Apesar da aridez ao redor, o concerto matutino também não foi inédito por aqui. Tanto que, como faço com quase tudo na vida, num dia em que o sabiazinho do presente me acordou antes do sol, misturei-o ao da memória e transformei seu canto em conto, alguns anos atrás. A esse texto, aliás, no podcast Phármakon, o ator Saulo Machado emprestou sua voz e um bocado de emoção. Perdi a conta, porém, de há quanto tempo não o ouvia. Consultei a data do texto: 1° de outubro de 2018. Em poucos dias, completam-se quatro anos. Em poucos dias mais um, o povo brasileiro vai às urnas eleger o novo presidente da República.

IV.

Quatro anos. O sabiá que ronda a sacada do meu quarto ficou emudecido por quatro anos.

V.

Evoquei Thiago de Mello há duas semanas e às 5h05 desta terça-feira, um sabiá cantou para mim: “Faz escuro mas eu canto/ porque a manhã vai chegar”. Clamei por um tempo de laranjas mais doces na semana passada e, exatamente hoje, um sabiá-laranjeira voltou a me fazer uma visita.

VI.

A história é conhecida. Em setembro de 1968, a música “Sabiá”, composta por Tom Jobim e Chico Buarque, venceu o 3° Festival Internacional da Canção, transmitido pela TV Globo. As vaias foram tantas que as intérpretes Cynara e Cybele, de cujas vozes me lembro no toca-discos da casa da minha infância, mal conseguiram cantá-la. Em segundo lugar ficou “Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré.

VII.

Não assisti, porque era muito pequena, mas minha mãe conta que a polêmica foi citada na minissérie “Anos rebeldes”, também exibida pela TV Globo em 1992, em pleno processo de impeachment de Fernando Collor de Mello. Se a lembrança dela estiver certa, há, na obra, cuja trama transcorria durante a ditadura civil-militar brasileira, uma discussão entre os protagonistas Maria Lúcia, interpretada por Malu Mader, e João Alfredo, vivido por Cássio Gabus Mendes, sobre qual das duas músicas deveria ganhar o Festival da Canção. Ela apostava na de Tom e Chico; ele, militante aguerrido, defendia o hino da esquerda composto por Vandré.

Ao fim da história, quando João Alfredo volta do exílio, confessa a Maria Lúcia que ela tinha razão.

VIII.

Isso também é mais do que conhecido, mas foi a “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias, que inspirou Chico Buarque na letra de “Sabiá”. Lembro-me bem de estudar o poema nas aulas de literatura, mas me recordo mais ainda de o Zé Guilherme, meu professor de matemática, tê-lo transformado em macete para decorarmos a fórmula de adição de arcos em trigonometria. Sen (A+ B). “Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá/ seno A cosseno B, seno B cosseno A”. Fiquei muito feliz de, poucos anos mais tarde, ter lido essa piada numa peça do Domingos de Oliveira, “Somos todos do jardim de infância”. Não faço mais a menor ideia do que seja uma fórmula de trigonometria, mas tenho uma saudade danada do Zé Guilherme.

IX.

Daqui do centro de Juiz de Fora, mesorregião da Zona da Mata mineira, no sudeste de Minas Gerais, também tenho uma saudade danada do meu país.

X.

O sabiá da minha vizinhança passou os últimos quatro anos sem cantar. Porque Gonçalves Dias tinha razão: as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá. Porque Chico Buarque tinha razão: quando conseguirmos voltar, a boiada deles terá passado e deitaremos à sombra de uma palmeira que já não há. Porque Tom Jobim, em sua triste melodia imitando passarinho, também tinha razão.

XI.

Nos últimos quatro anos, vivemos no exílio. Quando uma mulher pobre e com fome é humilhada por um homem que se recusa a lhe entregar uma marmita simplesmente porque ela não vota no mesmo candidato dele — que, por sinal, é o presidente, futuro ex!, que contribuiu para que 33 milhões de pessoas, como ela, também tivessem fome —, isso também é negação de cidadania. Quando o governo acaba, sem alarde, com o maior programa habitacional da história brasileira, deixando mais de 8 milhões de famílias sem moradia, segundo estudos baseados na Pnad (Pesquisa Nacional Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), isso também é desterro. Quando o orçamento da saúde é cortado, deixando milhões de pessoas sem atendimento, sem medicamentos, sem saneamento básico ou mesmo sem onde caírem mortas, isso também é degredo. Quando não reconhecemos o que aqueles que estão no poder, trabalhando exclusivamente em prol do direito de retirar nossos direitos, fizeram do país, isso também é expatriação.

XII.

Mas hoje, às 5h05, na alvorada, ouvi um sabiá cantar.

XIII.

“Vou voltar”, respondi ao passarinho. “Sei que ainda vou voltar.”

E meu país também vai voltar para mim. Para nós.