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Livrai-nos do mal, amém

Foto: Maria Tereza/Paróquia São Pio X

Mistérios gozosos

I.

No dia 12 de outubro, no mesmo instante em que romarias de todo o país se reuniam na Basílica de Nossa Senhora Aparecida, no município de Aparecida, estado de São Paulo, a 288 quilômetros de distância dali, no fim da Rua Maurício Gonçalves Filgueira, no alto do bairro Santa Efigênia, no município de Juiz de Fora, estado de Minas Gerais, fiéis transformaram um terreno vazio em templo. Lá, no santuário nacional, enquanto cristãos de verde e amarelo vaiavam o bispo de Aparecida por falar do “dragão da fome” e da importância de exercer bem o direito ao voto, aqui,  no espaço sacro improvisado, cristãos de verde e amarelo, completamente outros, reagiam à súplica por inclusão social com “Senhor, escutai a nossa prece”. Nas camisas daqueles, as cinco estrelas das conquistas brasileiras em Copas do Mundo de futebol masculino. Nas destes, no lugar da constelação, a imagem da santa, os algarismos 1 e 3 (assim, em sequência, formando o número da sorte de um ex-técnico vitorioso da seleção), e a súplica para que ela rogue pelo Brasil.

II.

Participei da missa da Paróquia São Pio X acompanhando o Ingoma, grupo artístico-musical de Juiz de Fora que pesquisa cultura popular, sobretudo das tradições de Minas Gerais. O Ingoma é um grupo laico, mas que, pela própria peculiaridade — o fato de seu principal foco de investigação artística ser o congado, festa religiosa afro-brasileira que, inserida no catolicismo, celebra outra/mesma Nossa Senhora, a do Rosário —, jamais conseguiria ou poderia ignorar que, no que entende como cultura, há também uma liturgia, nem que a arte é, ela própria, uma forma de devoção.

O convite para que esse grupo laico tomasse parte num rito sagrado já havia acontecido em outras três ocasiões, quando, em 2018, 2019 e 2022, o Ingoma tocou com os congadeiros e moçambiqueiros na Missa Conga da Festa de Congada e Moçambique de Piedade do Rio Grande, também em Minas Gerais. No último dia 12, no entanto, pela primeira vez o grupo foi convidado para uma celebração religiosa de sua cidade natal. E aceitou.

A participação aconteceu no finzinho da missa, na entrada da imagem da padroeira, carregada ao som de uma cantiga da tradição aprendida com os congadeiros e moçambiqueiros de Piedade: “Ê, mamãe/ Abraça eu, mamãe/ Embala eu, mamãe/ Cuida de mim”.

Mais de uma interpretação é possível, ainda mais naquele contexto, diante daquelas vestimentas: a mãe de cada um, óbvio; Maria, evidentemente, seja na forma do Rosário ou como Aparecida; a pátria. Ou, talvez, tudo isso misturado.

Nossa Senhora, de face negra com a maior parte de seu povo. Mátria.

III.

Nas raras vezes em que vai a uma missa católica, a adulta agnóstica sempre se reencontra com a adolescente do grupo jovem e com a criança da catequese.

IV.

Existe um cântico de comunhão, cuja letra estava no livro de missas que ganhei da minha avó, que me emocionava profundamente, aos 8 anos de idade, quando era entoado na Matriz Nossa Senhora de Fátima (que também é do Rosário), no bairro Santa Cruz, onde eu morava. Segundo o refrão, “É Jesus este pão de igualdade/ Viemos pra comungar/ Com a luta sofrida de um povo/ Que quer, ter voz, ter vez, lugar/ Comungar é tornar-se um perigo/ Viemos pra incomodar”. Foi só adulta e há muito não mais frequente nos bancos da igreja que percebi que eu tinha tido ali, inserida na hoje conservadora arquidiocese de Juiz de Fora (embora, na época, comandada por um frade franciscano), em pleno papado do também conservador João Paulo II, uma lição de Teologia da Libertação.

V.

Na infância, o que mais me impressionava nesse canto de eucaristia era o verbo incomodar. Tinha a mesma força com que me impactou, anos mais tarde, já na juventude, a canção “Pesadelo”, de Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós, quando a ouvi: “Você corta um verso, eu escrevo outro/Você me prende vivo, eu escapo morto/ De repente olha eu de novo/ Perturbando a paz, exigindo troco”.

Oração é reza, mas também o enunciado linguístico cuja estrutura se caracteriza, obrigatoriamente, pela presença de um verbo. É ação. Não são os cristãos de verde e amarelo de lá, vaiando o bispo de Aparecida, que nos incomodam; são os daqui que incomodam a eles, ao agir pelo fim da fome e ousar tomar de volta não só as cores da bandeira, mas todo o país.

O perigo somos nós.

Que medo eles têm de nós, olha aí.