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Colunas

Várias doses de omissão

Vacinação infantil

Dia desses, não faz muito tempo, uma amiga foi levar o filho para tomar as vacinas disponíveis — muitas das quais obrigatórias — para um bebê da idade dele. Na UBS próxima à casa dela, uma menininha de 2 anos também aguardava, ao lado da mãe, sua vez de vacinar. À espera, com o filho no colo, minha amiga observou a movimentação tensa dos profissionais de saúde da unidade, ouviu o tom de indignação em seus sussurros, sentiu a demora e, com ela, a sensação de que algo ali não ia bem. Não ia mesmo. Aos 2 anos de idade, aquela menininha que aguardava ao lado da mãe não havia recebido nenhuma vacina sequer além das duas — BCG (contra a tuberculose) e anti-Hepatite B — que são ministradas, ainda na maternidade, pela equipe do SUS (Sistema Único de Saúde) que percorre todos os hospitais. Duas vacinas em 2 anos de vida. Se não contei errado, nesse período, uma criança recebe pelo SUS, contando as respectivas doses e reforços de cada esquema vacinal, cerca de 23 vacinas.

Nesta terça-feira, 15 de novembro, feriado da Proclamação da República, completaram-se 60 dias desde que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) autorizou o uso pediátrico da vacina da Pfizer contra a Covid-19 para crianças acima de 6 meses. São 60 dias que, em meio a um novo aumento de casos — que atingem, principalmente, os mais vulneráveis (ou seja, os bebês, ainda não imunizados) —, o Ministério da Saúde segue omisso e negligente, sem providenciar as doses para cobrir toda a faixa etária pediátrica. Na verdade, sem nem mesmo permitir a vacinação de todas as crianças para as quais há vacina aprovada e disponível.

A Covid-19 é a doença prevenível que mais mata crianças no Brasil. Em 2020 e 2021, os dois primeiros anos de pandemia, 539 crianças de 6 meses a 3 anos morreram em decorrência do Sars-Cov-2 no país. Doenças como tuberculose, hepatite B, tétano, difteria, coqueluche, poliomielite, sarampo, rubéola, caxumba e meningite meningocócica, todas elas evitáveis por vacina, mataram juntas 144 crianças em dez anos. Em resumo, a Covid fez três vezes mais estrago em um quinto do tempo.

“Até quando você vai usar máscara?”, é a pergunta que fazem, verbalizada ou não, geralmente acompanhada de certo espanto ou um bocado de desdém. Enquanto meu filho, que nasceu em 2021, viver num paradoxo temporal, como se estivesse preso em 2020.

Da perda do certificado de eliminação do sarampo pelo Brasil, em 2019, ao aumento no número de mortes por meningite, neste ano, o pediatra e sanitarista Daniel Becker, do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), alertou, em entrevista ao jornal O Globo publicada no dia 9 de novembro, que estamos vivendo uma tragédia. “Os números são bem ruins e similares no Brasil inteiro. Aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, nós chegamos a ter em 2017 uma cobertura de 103% contra a poliomielite, ou seja, vacinamos mais crianças do que havia na cidade, vindas de outros municípios. Agora estamos com cerca de 62% apenas. A poliomielite tem um risco real de voltar”, advertiu. “Para a meningocócica, a vacina para meningite, a situação é ainda pior. Chegamos a ter 97% de cobertura, agora é por volta de 46%. É um escândalo.”

Tenho muitas ressalvas ao uso clichê do termo tragédia, porque o trágico não é fruto de uma série de catástrofes ou fenômenos naturais, mas de um conflito inevitável e insolúvel, uma fatalidade inexorável, incontornável e irremissível que se abate sobre a existência humana. O trágico é irremediável; tuberculose, hepatite B, tétano, difteria, coqueluche, poliomielite, sarampo, rubéola, caxumba, meningite meningocócica, Covid-19 e outras tantas não são. Por outro lado, Daniel Becker tem razão num sentido mais amplo. Na tragédia, desde a Antiguidade clássica, fala-se do infortúnio de um ser humano em um tempo específico, assolado por forças além de si mesmo. Lá, essas forças eram representadas pelos deuses e pelo destino. Aqui, na atualidade, podem muito bem assumir a máscara da sociedade e/ou do Estado. Durante a pandemia da Covid, o governo que felizmente termina no dia 31 de dezembro de 2022 não foi apenas leniente. Foi agente de um experimento de suposta imunidade de rebanho que custou centenas de milhares de mortes. E a forte campanha antivacina, apoiada inclusive por médicos irresponsáveis e charlatães, não comprometeu apenas o combate ao coronavírus, mas pôs em dúvida todo o PNI (Programa Nacional de Imunização).

Nesse sentido, uma criança morrer por qualquer doença prevenível, simplesmente porque um governo genocida assim sentenciou seu destino, é uma tragédia sim.

Reforço

Naquela tarde, na UBS em que minha amiga levou o filho para vacinar, a garotinha de 2 anos na fila tomou seis vacinas, limitadas à dosagem possível de ser aplicada, de uma vez só, sem fazer mal ao seu corpinho infantil. Não sei se a mãe, o pai ou qualquer outro responsável voltou à unidade nas datas indicadas para colocar em dia o calendário de vacinação da menina. Ameaçados de denúncia ao Conselho Tutelar, talvez sim. Vitimados pelos infortúnios de seres humanos pobres assolados por forças além de si mesmos (o desemprego; a fome; o desmonte do PNI; o sucateamento do SUS; a falta de creches; o desinvestimento na educação pública; o desprezo do governo que termina; a conivência de quem, ridícula mas também assustadoramente, na porta dos quartéis, ainda insiste em pedir que ele continue), talvez não.

Naquela tarde, diante daquela criança desprotegida, enfermeiras, auxiliares e técnicos de enfermagem, segundo minha amiga, ficaram muito nervosos. O mercado não ficou.