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E se Minas Gerais pedisse todo seu ouro de volta para Portugal?

Dobrão, maior moeda portuguesa corrente, cunhada em Minas Gerais entre 1724 e 1727 (Imagem: Reprodução)

E cada vez aumenta mais o coro dos países africanos pedindo para a Europa devolver o que lhe foi roubado. Na dianteira, a África do Sul, tão logo a rainha Elizabeth II morreu, solicitou para que a família real britânica devolvesse o maior diamante de lapidação conhecido do mundo. Conhecido como a Great Star of Africa (Grande Estrela da África, na tradução) ou Cullinan I, o diamante do cetro da finada monarca foi lapidado de uma gema extraída na África do Sul em 1905 e entregue à família real britânica pelas autoridades coloniais do país. Daí em diante, as demandas de repatriação ética se intensificaram, escoradas na discussão sobre o colonialismo. Trata-se de reparação para aquisições de joias de forma ilegítima.

Os países africanos vêm lutando persistentemente para recuperar não só as joias, mas artefatos culturais saqueados pelas tropas coloniais. Está lindo de ver! Recentemente, a Nigéria ocupa posição de destaque por requerer a devolução dos chamados Bronzes de Benin. Bronzes não no sentido da liga metálica, mas de todo e qualquer tipo de artefato roubado, entre ossos, madeiras e também metais preciosos. O Benin, no passado, era uma parte da Nigéria, assim como o Reino de Daomé.

No desdobramento mais recente da investida da Nigéria, o Museu de Arte Africana de Washington divulgou um aviso para justificar a falta de algumas obras: “Esta exposição continha anteriormente obras de arte históricas do Reino do Benin, na atual Nigéria, que foram saqueadas por soldados britânicos durante o ataque de 1897 ao palácio real. O roubo dos tesouros reais visava quebrar o poder do Oba, governante da época, permitindo assim o domínio britânico. Os Bronzes do Benin, como agora são conhecidos, são uma coleção de mais de duas mil esculturas da corte real criadas entre os séculos 13 e 17 por ligas de fundição de bronze. As 39 obras de arte associadas à coleção do museu foram adquiridas entre 1976 e 2016. Em 11 de outubro de 2022, o museu transferiu formalmente 29 destas obras ao povo da Nigéria”.

Os artefatos históricos conhecidos como “Bronzes de Benin” foram retirados em 1897 do Reino de Benin (atual Nigéria), que era controlada pelo exército britânico. As placas com bustos e esculturas dos séculos 16 e 18 eram parte da decoração do palácio real de Benin. Embora chamados de “Bronzes de Benin”, os artefatos são feitos de uma liga de cobre. Depois que os britânicos se apropriaram das peças, muitas delas foram vendidas e hoje estão espalhadas em diversos museus pelo mundo como Alemanha, Estados Unidos, Nova Zelândia e Inglaterra — que possui a maior parte dessa coleção.

Um vácuo com cara de F5. Agora, no fim de novembro, Portugal prometeu devolver tesouros roubados de suas ex-colônias: Brasil e 14 colônias africanas. Vai faltar navio! Em agosto, um museu de Londres concordou em devolver 72 objetos do Reino de Benin que foram saqueados durante uma operação militar britânica em 1897.

Em 2018, diversos países africanos se reuniram e exigiram que países da Europa e os EUA retornassem esses bens de enorme valor artístico e histórico. Em 2019, o governo francês havia devolvido apenas 26 peças a seus legítimos donos. Depois que Emmanuel Macron decidiu avançar com as restituições às ex-colónias francesas, o debate começou a ganhar corpo.

Recentemente, o arqueólogo e ex-ministro de antiguidades do Egito, Zahi Hawass, iniciou uma nova ofensiva para levar a Pedra de Roseta de volta à sua terra natal. Datada de 196 aC, ela foi encontrada em Memphis, Egito, em 1799, por um oficial militar francês. Dois anos depois, foi apreendida pelas forças britânicas em Alexandria e enviada para a Inglaterra. Em 1802, a estela, que permitia decifrar os hieróglifos, foi entregue ao Museu Britânico. Tanto a Roseta quanto o busto de Nefertiti (atualmente no Neues Museum de Berlim) e o teto do Zodíaco Dendera (alojado no Museu do Louvre) deveriam ser devolvidos permanentemente ao Egito.

Em meados de 2022, o Horniman Museum and Gardens, ao sul de Londres, concordou em devolver ao governo nigeriano 72 objetos saqueados de Benin City em 1897.

Ano passado, a Etiópia saudou a devolução de preciosos artefatos saqueados por soldados britânicos há mais de 150 anos, após uma longa campanha por sua restituição. A coleção – recuperada da Grã-Bretanha, Bélgica e Holanda – inclui uma coroa cerimonial, um escudo imperial, um conjunto de copos de chifre com relevo em prata, um livro de orações escrito à mão, cruzes e um colar.

E o nosso ouro?

O cenário de repatriação e reparação lá fora pode insuflar o mesmo por aqui? E se Minas Gerais pleiteasse todo o ouro levado para as igrejas em Portugal? “Devolve nosso ouro”, o meme usado por brasileiros contra os colonizadores amplia a discussão histórica. Nas redes sociais, a provocação está por toda parte. Mas e na prática?

Com as descobertas na região de Minas Gerais, no fim do século 17, o ouro passou a ser o principal produto extraído da então colônia portuguesa, tomando o lugar da cana-de-açúcar, que vivia grande declínio diante da concorrência caribenha. A quantidade total retirada daqui não é exata, mas segundo estimativa do historiador Virgílio Noya Pinto, autor de “O Ouro Brasileiro e Comércio Anglo-Português”, a produção brasileira durante o século 18 foi de 876.629 quilos. O geólogo Pandiá Calógeras inclui a Bahia nos cálculos e chega a 948.105 quilos.

A fome de ouro de Portugal tem início num momento em que a Europa e o mundo enfrentavam uma crise econômica. Parte dela é explicada por uma escassez de metais preciosos no mercado. Para complicar, a União Ibérica (a unificação das coroas espanhola e portuguesa) havia acabado, em 1640, os holandeses tomaram inúmeros entrepostos portugueses na Ásia e a produção açucareira no Caribe, em especial em Barbados, ascendia. O livro “O Ouro Brasileiro e Comércio Anglo-Português” chega à conclusão de que Portugal não tinha como pagar pelos produtos manufaturados vindos de outras partes da Europa, principalmente de Londres.

Ou seja, como informa o historiador Leonardo Marques, professor de América colonial na Universidade Federal Fluminense (UFF), “grande parte do ouro do Brasil ia, no fim das contas, para a Inglaterra, que se preparava para uma transformação econômica que viria a se concretizar com a Revolução Industrial”.

Em suma, muitos dos problemas que vemos no Brasil são resultado de uma lógica de exploração que deixa marcas até hoje: sociedade escravista, hierarquização, efeitos ambientais, devastação da mata atlântica, transformação da paisagem.

Portanto, o meme coloca luz numa discussão que deve ser maior do que apenas “devolve nosso ouro”.