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Diário da do Ccorte

Aveiro, Portugal (Foto: Jenia Flerman/Unsplash)

Qualquer pessoa que me conheça um pouco terá dificuldade em me ver como alguém extremamente acanhada, facilmente constrangida com quase tudo. Mas a mistura de baixa autoestima tratada com muita terapia e a insegurança de quem nunca quer incomodar faz sumir toda a purpurina do status caetanístico de “tímida espalhafatosa”, restando só uma cortante timidez. Basta me expor ao desconhecido.

Assim venho vivendo, no modo “indo com medo mesmo”. Medo de me expor ao ridículo, de falhar, de decepcionar, de passar vergonha; mas invariavelmente seguindo em frente. E assim vim parar – não sem muitas pausas, desvios de rota e recalibragens do percurso – em Aveiro, Portugal, para fazer um estágio de dez meses como parte do meu doutorado em Ciências Sociais, que curso pela UFJF.

Para quem vive com medo de ter medo, viver em um país estrangeiro, traz sempre um arfar de adrenalina no cangote, oscilando entre o receio de ser jeca numa situação cotidiana e o terror absoluto de cometer uma gafe imperdoável. Ou um crime, sei lá. De qualquer forma, cá estou eu, brincando de pique com meus melindres, e felizmente quase sempre me safando. Em Portugal e na vida.

Eu poderia (e talvez vá, em algum momento) falar muito sobre os clichês engraçados da Língua. Sobre como, num grupo de WhatsApp com colegas de pesquisa, lia o tempo todo sobre a Malta. “A Malta já chegou para a palestra”, “A Malta deve estar cansada de esperar”, a “Malta já sabe…” e eu pensando (ou, “a pensar”, como se diria aqui): Mas quem DIABOS é essa controladora dessa Malta e por que o que ela faz ou pensa importa tanto? “Malta” é galera, turma, pessoal, mas descobri há poucos dias, depois de tanto procurar por alguém que tivesse o apelido. Sem falar no espírito “A Praça é Nossa” que é invocado com os menus de restaurante ou produtos de supermercado, que oferecem “tábuas de pica” e “cacetinhos”. Mas isso é papo pra outra hora – várias outras horas, registre-se.

Eu nunca havia estudado sobre o Sul global (o antigo “terceiro mundo”) estando fora dele. Ficava curiosa em saber como se fala em coisas como “pensamento decolonial” com os dois pés fincados na terra de onde se saiu para invadir e submeter outras. Sempre me questionava se havia um efeito “climão” quando se abordava essas temáticas, sobretudo em classes que misturam a malta local com gente do Brasil, de diversos países africanos e de outras notórias ex-colônias portuguesas. Posso estar me precipitando, mas não achei. Ao contrário, notei um tom de respeito e reparação pela pesquisa dos países que um dia foram subjugados à Coroa (e a muitos coroas) de Portugal.

E como pesquisadora também, tenho percebido cada vez mais que a nossa formação em nada (nadíssima mesmo) deixa a desejar à do Velho (velhíssimo) Mundo. Tenho visto, em aulas do doutorado, conteúdos que conheci ainda como aluna de graduação, e que nessa Roda Viva acadêmica lecionei, como professora, também à graduação. Não se trata, claro, de atribuir juízo de valor ao que se leciona e quando aqui ou no Brasil – até porque não comparei grades curriculares, cursos ou qualquer coisa que o valha para fazê-lo devidamente.

Trata-se, afinal, de termos certeza absoluta da qualidade do ensino que se oferece nas universidades públicas e gratuitas brasileiras. Cria de onde sou, e tantos milhões de pessoas também. De perder de uma vez por todas a proverbial “síndrome de vira-lata”, termo, aliás, que odeio. 

Por isso, o último corte de verbas anunciado no apagar das luzes de um governo completamente antieducação e anticiência veio como um golpe especialmente duro neste momento em que tenho a chance de observar o Brasil aqui do mirante dos colonizadores. É óbvio que, medrosa que sou, o temor de me ver sem bolsa de estudos, meu salário de pesquisadora, me afetaria e impossibilitaria minha permanência no exterior para conclusão do meu estágio doutoral. 

Mas privilegiada, eu não estaria, como tantos e tantas colegas, sob o risco de não ter como comer ou retornar ao Brasil com o rombo nas verbas do Ministério da Educação, que financia o programa. O clima nos grupos de WhatsApp era de desespero, de gente pensando em largar doutorado e arrumar qualquer trabalho para conseguir voltar ao país. (Antes que se critique, é proibido ter bolsa e vínculo empregatício. Quem é bolsista não pode trabalhar e quem trabalha não pode ter bolsa).Tampouco estaria como centenas (talvez milhares?) de estudantes que teriam que abandonar o ensino superior para voltarem ao mercado formal para ajudarem na renda familiar – ou assumirem responsabilidade integral por ela.

Felizmente (e não sem a reação de diversos setores), houve a liberação das verbas congeladas e, ao que tudo indica, os efeitos da tesourada foram contidos, no Brasil e a quem o representa fora dele. Mas as universidades brasileiras continuam em franco processo de sucateamento e insegurança, ameaçando como nunca antes a educação e a ciência do país. Furando um pneu fundamental da transformação social justamente quando o povo mais precisa de todos funcionando.


É doloroso demais observar isso daqui. Tenho me sentido como Darcy Ribeiro em sua célebre frase, com lentes ainda mais límpidas por estar dormindo e acordando aqui, onde estão as instituições de ensino e pesquisa mais antigas do mundo. “Tenho tão nítido o Brasil que pode ser, e há de ser, que me dói o Brasil que é.” Que venha primeiro de janeiro, jogando a pá de cal destes tempos tristes e sepultando de vez o atual “Brasil que é”. Sigo, como de costume, com medo e em frente, riscando na parede da memória os dias como prisioneiros de desenho animado.