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Colunas

Feliz ato novo

ATO I, cena 1

Foi entre o Natal e o Ano Novo que, em 2014, pegamos o carro e partimos pela BR-040 rumo a Brasília. Dois meses antes, tínhamos passado, ao lado de uma multidão de conhecidos e desconhecidos concentrados na Praça da Estação de Juiz de Fora, pela tensa apuração das urnas das eleições presidenciais, que por pouco não deram a vitória a Aécio Neves (PSDB). Na estrada, porém, naquele fim de dezembro, o alívio pela reeleição da Dilma Rousseff (PT) estava sentado bem no meu colo, no banco do carona. E nós estaríamos lá, no dia 1° de janeiro de 2015, para vê-la tomar posse outra vez.

Cena 2

Estávamos saindo de shorts e camisetas num primeiro dia de ano de extremo calor quando chegou, no celular do Gustavo Burla, uma mensagem da Nara, amiga que na ocasião trabalhava na Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República: “Tenho um convite para a posse, quer vir?”. Não sei se foram bem essas as palavras, mas foram suficientes para que ele voltasse atrás e vestisse a única calça, que por sorte fingia ser social, dentro da mala de verão pensada para um mês de road trip pelo litoral do Nordeste. De Brasília sairíamos, no dia seguinte, cortando os estados de Goiás e Tocantins, até chegar a São Luís do Maranhão. Na tarde do dia 1°, entretanto, Gustavo assistiu Dilma subir em direção ao Planalto postado bem embaixo da rampa.

Cena 3

É possível passar por muita coisa em um mês de estrada no interior do país. Buracos sem conta. Latifúndios imensos. Plantações de soja a perder de vista. Caminhões monstruosos. Indígenas bloqueando a rodovia. Trabalhadores na beira dos caminhos. Pessoas gentis avisando que de jeito nenhum o Gol 1.000  não “traçado” vai conseguir passar pelos percursos de terra que o Google Maps indicou sem mostrar que não eram asfaltados. Riachos levando embora a placa dianteira. Policiais parando o carro justamente por ele estar sem placa. E postos de combustível, é claro, nos quais precisávamos parar de tempos e tempos, mas que escolhíamos pelo desespero do tanque na reserva ou, o que era mais comum, pelo preço.

Abastecer a mais de R$3 o litro era impensável; era um roubo.

Nós, que votamos na Dilma, que sofremos na apuração, que assistimos felizes sua posse, não culpamos a presidenta pelo preço da gasolina. Mas a história que se desenrolou a partir dali mostra que muita gente, infelizmente, culpou.

ATO 2, cena 1

Quando eu era adolescente, minha família costumava passar réveillon no Morro do Cristo, em Juiz de Fora, para ver de perto os fogos de artifício colorirem o céu e se apagarem antes de as fagulhas caírem no vale. Nessa época, 12 horas antes, era possível encontrar o prefeito Tarcísio Delgado (então PMDB) no Calçadão da Rua Halfeld, distribuindo sidra para os transeuntes sob a chuva de papel picado. Depois da meia-noite, pegávamos um intenso engarrafamento para descer do ponto mais alto da cidade e voltar para casa.

Muitos anos mais tarde, em 2012, quando me mudei para um apartamento com vista para o Morro do Cristo, chamamos amigos para jantar e abrir a garrafa de espumante da virada admirando a paisagem urbana pela sacada do 15° andar. Nesse ano, no entanto, depois de não ter conseguido se reeleger, o prefeito Custódio Mattos (PSDB), às vésperas de deixar o cargo, cancelou a queima de fogos por falta de verba. O único estouro foi o da rolha, que voou pela Avenida Independência, embora essa, havia mais de um ano, já não se chamasse mais assim.

Cena 2

Na virada de 2015 para 2016, estávamos em Paris, onde eu tinha ido estudar com bolsa do PDSE (Programa de Doutorado-Sanduíche no Exterior) paga pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), fundação vinculada ao MEC (Ministério da Educação). A até então tradicional queima de fogos na Avenida Champs Elysées, no entanto, também foi proibida quando, pouco mais de um mês antes, no dia 13 de novembro, ataques terroristas deixaram 129 mortos e 350 feridos nos arredores do Stade de France e na casa de espetáculos Bataclan, além de quatro restaurantes nas proximidades, três deles no 11° distrito, bem onde a gente morava.

Nessa noite tínhamos tomado um chope depois de um dia inteiro assistindo a seminário sobre Roland Barthes no Collège de France e só soubemos dos atentados em casa, quando parentes ligaram do Brasil para saber se estávamos bem. Um mês e meio depois, na última noite do ano, foi a vez de beber champanhe barato em taça de plástico no adro da igreja de Sacré Cœuer observando, de longe, o piscar das luzes na Torre Eiffel.

Cena 3

Já assisti, deslumbrada, à queima de fogos na Praia de Copacabana. Um ano antes do réveillon em Brasília, também os vi cintilar na margem do Rio Mississipi, em Nova Orleans. Dois anos depois, mesmo após o golpe que depôs a presidenta Dilma, ainda consegui fazê-lo à beira de outro rio, o Danúbio, o céu brilhando multicor sobre o parlamento húngaro, em Budapeste. E a despeito de eu hoje me juntar ao coro dos que dizem não aos fogos — pelos animais, pelos danos ambientais, crianças, pelos idosos, polos cardíacos, pelas pessoas hospitalizadas, pelo gasto desnecessário em meio a uma crise econômica, pelo que podem esconder de terror —, o que essas lembranças (que provavelmente merecem o óbvio disclaimer de pertencerem a uma integrante da classe média branca a privilegiada) me trazem não é falta do espetáculo pirotécnico. É saudade de um outro tipo de ardor.

Mal me lembro dos réveillons que aconteceram de Temer para cá. Menos ainda, a partir de Bolsonaro, de a data, expectante por natureza, ter evocado alguma esperança. Depois do golpe de 2016, a gasolina não baixou de R$ 3. Pelo contrário. Viagens, seja de carro ou de avião, pelo país ou para fora dela, não ficaram mais acessíveis. Pelo contrário. Estudantes e pesquisadores não tiveram mais acesso a bolsas de estudo no exterior pagas pelo governo brasileiro. Muito pelo contrário. Um Gol 1.000 não se tornou um carro ainda mais popular do que era. Pelo contrário, custa hoje o que, provavelmente, um carro “traçado” custava então. E até o terror, esse que era um temor de nações distantes e distintas, passou a ser uma preocupação imediata deste próximo 1° de janeiro aqui.

Enquanto uso este espaço para, a cada semana, falar mais do passado que do presente, percebo, porém, que (e mais uma vez cabe o disclaimer), além de possibilidades que se tornaram quase impossíveis, o que Temer e, sobretudo, Bolsonaro mais me roubaram foram histórias boas para contar. E é por histórias melhores, para mim e para o país, que espero, esperançosa, a semana, o ano, o ato, o presidente que vêm.