Pretérito imperfeito
No instante em que terroristas invadiam o Palácio do Planalto no último domingo, 8 de janeiro de 2023, o relógio fabricado por Balthazar Martinot, com design de André-Charles Boulle, que a família real portuguesa recebeu de presente do rei da França e que Dom João VI trouxe consigo para o Brasil de 2023, marcava, parado ou não, uma hora determinada que nunca ficaremos sabendo. Porque o fato é que, agora, ele não marca mais.
Entre as tantas obras de arte e objetos históricos dos quais os invasores debochavam, como da cara de todos nós, na medida em que os destruíam nos três palácios dos poderes constituídos da República Federativa do Brasil, estava o raro relógio de pêndulo, cuja única réplica se encontra em Versalhes. Adoradores da bandeira nacional que dizem ser, os criminosos, porém, num paradoxo, ao colocarem as mãos naquele relógio, num paradoxo, afrontavam a ordem enquanto lhe tiravam os números; tentavam impedir o progresso ao passo que lhe destroçavam os ponteiros. E, ironicamente, em cenas jamais registradas na memória do regime republicano brasileiro, mesmo tendo ele passado por mais períodos sob o jugo do autoritarismo do que por respiros democráticos, arrancaram do topo do relógio, como um tsunami, a estátua de Netuno.
Num só golpe — essa palavra pela qual têm tanto apreço embora disfarcem-na com eufemismos —, o que os fascistas atacavam ao longo de sua marcha enfurecida no último 8 de janeiro era tanto passado (ainda que para ele queiram insistentemente voltar), mostrando todo seu desprezo pela história, quanto futuro, subtraindo, simbolicamente, aquilo que a faz girar.
Roubaram-nos mais do que o tempo. Roubaram-nos o sonho de que começávamos outro tempo.
Presente
Por definição científica, o céu nada mais é do que o panorama obtido a partir da Terra quando contemplamos o universo ao nosso redor. Nós o enxergamos azul simplesmente porque essa é a cor mais refletida quando a luz do Sol, ao atravessar a atmosfera terrestre, refratada-se e dispersa-se pelo ar. Trata-se de uma verdade comprovada pela ótica que vale para todos os pontos do planeta.
No entanto, ainda assim, o céu de Brasília não é o mesmo céu daqui.
Sempre que o azul celeste dá as caras em Juiz de Fora (o que não tem acontecido há bastantes dias) ou na grande maioria das outras cidades de Minas Gerais, é recortado pelo verde ondulado do relevo. Nosso horizonte (às vezes belo, outras, pelas intervenções humanas, nem tanto) não é uma linha reta como a que se vê no mar, mas, em vez disso, um sobe e desce a perder de vista, como se a própria paisagem tivesse se transformado num tsunami, para depois se cristalizar em ondas enormes erguidas em direção ao retalho de céu que se entende feito uma tenda entre as pontas dos morros.
Em Brasília, longe da serra, em pleno Planalto Central, o céu não é um retalho de tenda, mas uma lona inteira. Uma lona que, muitas vezes, assemelha-se à de circo mesmo, com tudo o que esse substantivo pode trazer de espetáculo, mas, muitas vezes, também de escândalo, com seu picadeiro, seus palhaços, seus malabaristas, seus (des)equilibristas, seus truques, sua vocação de globo da morte. Pelo relevo, pela altitude, pela seca, o céu de Brasília é a própria definição de abóbada, ainda que sua curvatura não se apoie em colunas, mas nasça direto do rés do chão. Uma cúpula, que faz com que não só o teto da capital federal mas também as paredes que a circundam sejam inteiras céu.
A primeira pessoa a me falar sobre o céu de Brasília foi a Leila Herédia, minha amiga e ex-editora no jornal Tribuna de Minas, que hoje trabalha na Rádio Senado. Tenho poucas fotos de viagens à capital do país, mas uma delas é justamente com a Leila, num passeio a que ela me levou. Na imagem, uma selfie, nós duas estamos do lado esquerdo do quadro e, do direito, é possível ver um pedacinho do Lago Paranoá sob um céu pálido, porque a câmera do celular não fez jus à cor.
Quando leio, pelas notícias como aquelas que a Leila me ensinou a escrever, o rastro de destruição deixado no Congresso Nacional, é na na minha amiga que penso, andando na última segunda-feira, em seu retorno ao trabalho, por aqueles corredores encharcados de água e urina, com painéis de arte danificados e um tanto de esperança no mundo danificada também. Lembro nossa foto, mas, em vez do Paranoá, penso na paranoia, dupla: a que levou a multidão de bolsonaristas até aqueles palácios e a que eles instalaram lá.
Futuro do presente
O céu de Brasília parecia muito azul pelas imagens televisionadas no dia 1° de janeiro mostrando a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Inúmeros amigos e conhecidos meus estavam lá; ninguém que eu conheça fez o mesmo uma semana depois — e confesso estar bastante orgulhosa do que isso diz sobre mim.
Esse mesmo céu ainda levaria muitas horas para clarear de novo quando Lula, acompanhado da primeira-dama Janja Lula da Silva, de 27 governadores e/ou representantes das unidades da federação, de ministros de Estado, de ministros dos STF (Supremo Tribunal Federal) e de mais um monte de gente, desceu a rampa que subira oito dias antes, igualmente acompanhado, então do povo brasileiro. Há, na frase anterior, verbos conjugados nos três pretéritos do indicativo, mas o gesto tem bem mais de presente e muito de futuro. Presente e futuro que podem ser sintetizados em uma única sentença das várias ditas na última segunda-feira (9) pelo chefe do Estado brasileiro em resposta aos atentados antidemocráticos da véspera: “Eles querem golpe, mas golpe não vai ter”.
Olho pela sacada para o céu chuvoso de Juiz de Fora e penso que ele levará muitas horas, talvez dias, para clarear de novo. O mesmo vale para o céu do Brasil. Dias, talvez meses, quiçá anos. Mas irá. Para que isso aconteça, porém, o relógio da reação cobra pressa para tomar de volta o que nos tiraram de mais importante. Com o perdão de Vinicius de Moraes, nosso tempo não é quando. Nosso tempo é já.