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5 dias tiros de Carnaval

I.

Só constatei agora, neste 22 de fevereiro de 2023, Quarta-Feira de Cinzas, aos 39 anos, que nunca tive meu próprio pacote de confetes. Minha mais remota lembrança do Carnaval é do chão de tacos do salão de algum clube, provavelmente da ABCR (Associação Beneficente Cultural e Recreativa), localizada em Benfica, no complexo da Imbel (Indústria de Material Bélico do Brasil). Nessa época da infância, minha mãe ainda chamava a ABCR de FEEA — cujo significado acabo de descobrir, pelo Google, ser Fábrica de Estojos e Espoletas de Artilharia —, e a Imbel ainda era Engesa (Engenheiros Especializados S.A.), empresa onde trabalharam meu pai, meu avô paterno e meu tio-avô. É provavelmente do chão desse clube que me lembro, coalhado de pequeninos e coloridos círculos de papel, que pessoas com seus próprios pacotinhos espalhavam para que eu os juntasse com as mãos depois e atirasse bem na cabeça do meu amigo Rodrigo, um ano mais velho que eu.

O Rodrigo, na verdade, não era bem meu amigo, mas filho de uma amiga da minha mãe (nossa vizinha no bairro Santa Cruz), e tinha algo que eu cobiçava muito: um balanço de pneu pendurado no galho de uma mangueira enorme no terreiro. Naquele quintal foi que, com uns 5 ou 6 anos de idade, pisei num prego enferrujado caído no chão do galinheiro. Não era um projétil, mas atravessou minha Havaiana azul e branca, entrou fundo na sola do meu pé e me fez tomar a primeira e única injeção antitetânica da minha vida — além de voltar a engatinhar como um bebê, porque não conseguia pisar no chão.

II.

Faz anos que não tenho notícias do Rodrigo e as últimas estavam longe de valer bailes de Carnaval, mesmo em matinês. Lembrei-me dele, porém, porque tem uma foto nossa em algum álbum antigo, ele com um colar havaiano, eu vestida de Melindrosa com uma fantasia vermelha que fora da minha prima Cris. Aqueles confetes catados do piso de taco, com um punhado de poeira junto, também poderiam ter sido atirados na própria Cris. Ou na Ju, minha outra prima (também existe uma foto das duas de mãos dadas com uma pequena Táscia, que possivelmente recém-aprendera a andar, fantasiada de deusa grega com chinelinho de dedo preso com elástico nos pés).

Atirar não é um verbo escolhido ao acaso. Batalha de confetes, é como chamam. Gustavo Burla recordou essa expressão aqui em O PHAROL um ano atrás, quando começou a guerra entre Rússia e Ucrânia; quando foi outro Carnaval. Há um quê de ironia, no entanto, quando ela acontece em pleno salão de um clube pertencente a uma fábrica de munição.

III.

Muito antes daquele Carnaval, o carro do meu avô paterno, não sei se entrando ou saindo do trabalho, oi atingido por um trem na passagem de nível próxima à Imbel. Eu era pequena demais para me lembrar, mas pensei nele 30 anos depois, em  2014 (ano no 50° aniversário do golpe de 1964, essa data que se tornou minha espécie de obsessão), quando vi um homem se jogar na frente de um trem em outra das passagens de nível da linha férrea que, lado a lado com o rio, parte Juiz de Fora em duas. Foi o tempo de ouvir o alerta desesperado do maquinista, escutar os gritos dos outros pedestres, olhar para trás e ele não estava mais lá. Só o trem. Era manhã. Fazia sol. O céu estava azul.

Não sei se aquele homem tinha reparado nesse detalhe; tampouco posso dizer que, se tivesse, isso mudaria alguma coisa em seu percurso. Mesmo sem chegar perto do corpo, arrastado metros à frente e ao redor do qual se reuniu bastante gente, embora menos que num bloco de Carnaval, chorei, com minha mãe ao telefone, o resto do caminho de volta para casa.

Não tenho certeza se no mesmo dia, mas pensei ainda que trem-bala, mais que um grande avanço da tecnologia de transportes, também pode ser uma metáfora assustadora. Em julho de 1976, Maria Auxiliadora Lara Barcelos, vítima da ditadura brasileira, jogou-se na frente de um vagão de trem na estação de Charlottenburg do metrô de Berlim. Recuso-me a chamar de suicídio o desfecho de um assassinato que levou anos a fio.

IV.

Recorro novamente ao Google e uma lista nacional se abre:

4 horas atrás: “Jovem é baleado com 5 tiros no sofá da casa de amigo em MT”

3 semanas atrás: “Homem é assassinado com 5 tiros em Santa Luzia (MG)”

2 dias atrás: “Homem é executado com mais de 5 tiros próximo a UPA”

21 horas atrás: “Adolescente de 15 anos morre após ser baleado com cinco tiros em cidade da região”

1 semana atrás: “Homem é morto com 5 tiros dentro da própria borracharia em Manaus”

1 semana atrás: “Jovem é assassinado com 5 tiros em bloco carnavalesco; autor pula grade e foge”

A despeito do ambiente de um dos crimes, nada disso tem a ver com o Carnaval. Tampouco tem a ver com uma classe ou um território, apesar de representantes de Ministérios Públicos e Judiciários como os de Juiz de Fora abusarem de racismo territorial e criminalização da pobreza para tentarem impedir a festa na periferia, como se a ela — e a esse período do ano — estivesse restrita a violência. (Vale lembrar que não foi em nenhum bairro periférico, mas bem no Parque Halfeld, no coração da cidade, a principal ocorrência de homicídio ocorrida durante um bloco na cidade).

As notícias nacionais colhidas a esmo, contudo, têm muito a ver com a fantasia bolsonarista que, em quatro anos, conforme dados colhidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) e analisados pelos institutos Sou da Paz e Igarapé, fez mais de 1,3 milhão de armas entrarem em circulação no país.

V.

Tem mais armas e ligações com o exércitos que carnavais na história da minha família. Entretanto, e talvez por isso mesmo, tenho também uma grande sanha de enfrentar quem ainda acha que a outras gentes — gente como Dora, ou gente como o menino pobre de periferia com quem eu brincava na infância — não se jogam confetes. Que a elas basta morrer. De bala. De qualquer trem.