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Um breve olhar sobre a crise humanitária Yanomami

Garimpo no Rio Uraricoera, Terra Indígena Yanomami, em janeiro de 2022 (Foto: Instituto Socioambiental)

Assistimos estarrecidos nos últimos dias a crise humanitária nas terras dos povos yanomami. O governo da morte, protagonizado pela gestão de Jair Bolsonaro e seus asseclas, promoveu uma das mais cruéis violações dos direitos humanos da nossa recente história republicana. Na linha do pensamento colonial, muito comum entre representantes do retrocesso oligárquico, o govenador de Roraima, Antonio Denarium (PP), cometeu a indecência de defender a aculturação dos indígenas, como meio de “integração” à civilização branca e à lógica do capital.

Atentar contra a cultura, os valores e os modos de vida de uma comunidade nada mais é que estimular o seu desaparecimento. Prática típica das ações coloniais e imperialistas que impuseram a espoliação, a indústria da guerra, a escravização e o genocídio aos povos da América, Ásia e África durante séculos. Foi o que assolou a Europa e o mundo com o totalitarismo nazista e sua ideologia de exceção, cujo auge de seu extremismo teve curso na Segunda Guerra Mundial, nos campos de concentração e no Holocausto.

Denarium fez defesa da exploração nociva das terras indígenas ao afirmar que a situação de calamidade humanitária no território não tem ligação com o garimpo. Dupla agressão: aos povos originários e ao meio ambiente. Garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami aumentou em 1.963% entre 2019 e 2021 se comparando aos dez últimos anos, segundo dados do Sistema de Monitoramento do Garimpo Ilegal da Hutukara Associação Yanomami (Fonte: Greenpeace).

Foram os garimpeiros que destruíram postos de saúde e impediram o acesso dos indígenas a assistência médica e meios de subsistência, incorrendo em uma série de mortes de crianças e idosos, desnutrição, malária e inanição. São eles que espalham medo, terror e violência na TI, contaminam rios e devastam o meio ambiente naquele território.   

Pesa ainda o fato de uma autoridade pública querer se desvencilhar da responsabilidade alegando tratar-se de um problema existente há décadas, não restrito ao território yanomami.  Age assim, de forma negligente e omissa no seu cuidado. É conivente aos atos ilícitos e denota passividade diante de ações criminosas em áreas de proteção ambiental sob a alegação de que os “índios querem evoluir”, se misturar com o restante da população. Alega ser contra a invasão das terras demarcadas, mas não agiu concretamente contra as atividades ilegais ao longo dos últimos anos.

Um dos princípios fundamentais dos Direitos humanos é a defesa da vida, da liberdade e da segurança dos mais vulneráveis perante os abusos de poder; de invocar o combate ao ódio e a intolerância contra quem quer que seja, sob o amparo e proteção da lei. No Brasil e seu catálogo de atrocidades de toda a espécie contra mulheres, pessoas LGBTQI+, pobres e periféricos, negros e indígenas, mobilizar os direitos humanos em sua defesa é sempre um grande desafio.

Reina por aqui uma visão estigmatizada que teima deteriorar o imaginário coletivo sobre os direitos fundamentais do ser humano, em muitos casos atacado e criticado como meio para defender marginal, criminoso e vagabundo. Não por acaso, a marginalização dos corpos pretos, a territorialização da pobreza e da violência, o preconceito e a discriminação generalizada contra quem não se encaixa nos padrões do conservadorismo branco é o pano de fundo para o desprezo pelos Direitos Humanos.    

A cultura de exclusão e a naturalização do menosprezo e do ódio aos condenados desta terra, no imediato momento de contraste inequívoco entre o governo passado e o atual, como bem asseverou o ministro Silvio Almeida em entrevista a Globo News, escapa de uma disputa reservada unicamente ao âmbito moral. Portanto, localiza-se também no campo político-ideológico e coloca em jogo a defesa dos Direitos Humanos contra toda ordem de ataques aos seus preceitos e relevância na proteção dos povos e suas culturas.

Como signatário de dispositivos internacionais destinados a assegurar os direitos da pessoa humana, é dever do Estado brasileiro proteger os cidadãos, os indivíduos nacionais e estrangeiros que se encontram sobre sua jurisdição territorial.  O Estado não tem o direito de mobilizar suas funções de polícia e prerrogativas de coerção legal para impor a violência deliberada e sem justa causa a qualquer segmento da sociedade, tal como de isentar-se das responsabilidades sociais e humanitárias aos mais necessitados, como se fossem seres humanos de segunda, terceira categoria.

Não existe em nossos marcos constitucionais nada que rebaixe a condição humana ou de cidadania de alguém, como outrora ocorrera nos tempos coloniais e do Império. Prevalece o ordenamento republicano e as garantias do Estado de Direito a todo os cidadãos por ele assistido sem distinção de raça, cor, gênero, etnia, religião e condição socioeconômica.

No caso da TI Yanomami, trata-se de apurar a prática de genocídio e omissão de socorro, desobediência, quebra de segredo de justiça e crimes ambientais, como determinou o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso em petição enviada as autoridades federais. No documento, Barroso substancia a gravidade dos fatos ligados ao estado de “absoluta insegurança” das comunidades indígenas, identificando “ação ou omissão, parcial ou total” de altas autoridades em ilícitos no esteio de “absoluta anomia no trato da matéria”. A petição indica ações deliberadas por parte de autoridades estaduais e federais, administrativas, civis e militares e “ ilustram quadro gravíssimo e preocupante” que se abate sobre os yanomami.

O que acontece agora com o povo yanomami deve ser rigorosamente investigado pelas autoridades e todos os responsáveis severamente punidos. Não é possível que aos olhos de toda a sociedade brasileira e de expressiva parte da comunidade internacional os criminosos passem ilesos ou sejam brandamente punidos diante da dimensão do atentado ocorrido em Roraima.

Urge justiça e reparação aos povos indígenas. O Estado brasileiro tem o dever constitucional e humanitário de garantir sua vida e suas liberdades. É preciso que lhes sejam assegurado o direto à saúde, à educação e à cultura, promovendo o bem-estar e os meios de subsistência.  Questões estas que conservam estreitos laços com a proteção dos biomas brasileiros, do meio ambiente na sua totalidade.