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Farol aceso

Os atores Marcos Paulo e Marisa Loures no espetáculo “Canção de ninar (ou Faça o que tem que fazer)” Foto: Carlos Júnior

Houve outro O Farol antes de O Pharol. Quer dizer, está bem explicado aqui que houve O Pharol, um outro, que começou a ser publicado em Paraíba do Sul pelas mãos de Thomaz Cameron em 11 de setembro de 1866, e depois foi transferido para Juiz de Fora, e ainda mais depois se apagou melancolicamente em 1939, durante a ditadura do Estado Novo.

No entanto, nem faz muito tempo, mas bem antes de este nosso O Pharol de agora ganhar sua primeira edição impressa, na última terça-feira (7), houve também O Farol, jornal-programa do espetáculo “Canção de ninar (ou Faça o que tem que fazer)”, escrito por mim em 2014 e encenado pelo T.O.C. — Teatro Obsessivo Compulsivo em 2015, um ano antes do golpe que derrubou Dilma Rousseff.

A publicação com informações sobre a peça — escrita, montagem, bastidores, ficha técnica, motivação — era vendida antes de cada apresentação por quanto o comprador quisesse pagar. O nome do jornal foi escolhido por três motivos: era o veículo em que Nina, a protagonista da história (ou das histórias), interpretada pela atriz Marisa Loures, trabalhava como jornalista; remetia, embora com grafia atualizada, ao primeiro jornal de Juiz de Fora; e fazia alusão ao Farol de Alexandria, uma das sete maravilhas do mundo antigo, varrido por um terremoto da cidade egípcia onde nasceu Catarina, a santa cujo martírio costurou a trama de opressão e resistência que queríamos contar.

Um quarto motivo, apesar de ser óbvio, só me ocorre agora, a partir do slogan deste nosso O Pharol: porque acredito que o papel do teatro, da arte, é também lançar luz. Se não exatamente sobre os fatos, uma vez que se tratava de uma ficção, ao menos sobre a sociedade em que se insere. E não tenho dúvidas de que nosso alerta foi bem maior do que o de qualquer jornal.

Muita gente que assistiu a “Canção de ninar” a descreve como “aquela peça sobre a ditadura”. Não era. De fato, os 50 anos do golpe de 1964 — que, em 31 de março de 2014, suscitaram comemorações de uma extrema direita que já começava a mostrar as caras — foram a gota final que fez o texto jorrar. Março, contudo, não é o mês do golpe, que aconteceu em 1° de abril (mesmo mês em que, tantas décadas mais tarde, a Câmara dos Deputados aprovaria, numa sessão atroz, o impeachment de Dilma). Março é, isto sim, além do mês em que se celebra o Dia Mundial do Teatro, também o mês da luta internacional das mulheres. E é ela, muito mais do que a denúncia das atrocidades do regime militar e da perversidade dos que sonham revivê-las, que se encenava na peça.

Curiosamente, lá em 2014, não foi no Dia Internacional das Mulheres, 8 de março, mas, sim, no do teatro, 27, que o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) divulgou pesquisa sobre a tolerância social da população à violência contra as mulheres no Brasil. Naquele primeiro momento, os números eram chocantes. Isso porque, conforme os dados divulgados, 65,1% das pessoas acreditavam que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas” (até a expressão que dá título a este artigo muitas vezes assume conotação pejorativa para desqualificar, através da roupa, o comportamento de uma mulher). E, ao todo, 58,5% dos entrevistados também acreditavam que “se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”.

Dias depois, o Ipea corrigiu a primeira informação, explicando que a relação de causa e consequência entre vestimenta e agressão tinha sido endossada, na verdade, por 27% dos entrevistados. A redução de quase 40 pontos percentuais, porém, não diminuiu a gravidade da constatação, já que quase 60% da amostra mantinha a ideia de responsabilizar a mulher pela violência sexual sofrida.

A indignação levou a uma ampla campanha contra a cultura do estupro na mídia e nas redes sociais. E levou a “Canção de ninar”.

Não me lembro de outra pesquisa como a do Ipea, mas, quase dez anos depois, a sensação é de que , infelizmente, os resultados não devem ter mudado muito. Exemplo disso, para citar apenas um caso, são as múltiplas violências psicológicas, morais e públicas sofridas pela vítima do jogador Daniel Alves depois de denunciá-lo. Para enfrentar isso, portanto, é imprescindível que continuem se acendendo faróis. Pharóis. Teatro.