Conjuntura

O vinho nacional azedou?

Mais de 200 trabalhadores foram resgatados em condições análogas à escravidão atuando na colheita da uva em Bento Gonçalves.(Foto: Divulgação/PRF)

A polícia gaúcha instaurou, na tarde dessa quarta-feira (1º), inquérito contra o vereador Sandro Fantinel (ex-Patriota), de Caxias do Sul, na Serra do Rio Grande do Sul. Na terça-feira (28), ele fez um comentário xenofóbico ao usar a tribuna, questionando a repercussão do caso de trabalhadores resgatados em situação de escravidão nas vinícolas da Serra Gaúcha. Fantinel pediu que empresas “não contratem mais aquela gente lá de cima” e sugeriu adoção mão de obra argentina, pois, segundo ele, a única cultura do povo baiano é “viver na praia tocando tambor”.

Lamentável, desumano e criminoso o discurso, tanto quanto a atitude do Centro da Indústria e Comércio de Bento Gonçalves que, em nota, criticou o “sistema assistencialista” e atribuiu essa situação degradante à escassez de mão de obra local qualificada para o trabalho. Depreciativo e racista, pois a maioria desses trabalhadores é de pessoas pretas. Não foi o vinho nacional que azedou, mas a precarização das leis trabalhistas brasileiras e a politização do caso.

Menos de 24 horas depois, o Patriota expulsou Sandro Fantinel. O ex-vice-prefeito de Caxias do Sul, Ricardo Fabris de Abreu, protocolou um pedido de cassação do vereador. O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo leite (PSDB), considerou o discurso de Fantinel como “xenófobo e nojento” e afirmou que não representa o povo do estado. “Os gaúchos estão de braços abertos para todos, sempre.”

A presidente da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, deputada Laura Sito (PT), utilizou a tribuna na sessão plenária para anunciar um plano de trabalho para acompanhar a temática do trabalho análogo à escravidão. O deputado Leonel Radde (PT) registrou um Boletim de Ocorrência contra o vereador.

O governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues (PT), também se pronunciou e condenou as falas xenofóbicas do vereador. Deputado federal Félix Mendonça Júnior, presidente do PDT da Bahia, afirmou que o vereador deve ser punido com rigor, tanto na esfera política quanto judicial. “Fiquei surpreso em ver um parlamentar de um estado avançado, educado, ser tão desqualificado, despreparado, xenófobo”.

A denúncia veio à tona na noite de 22 de fevereiro. Mais de 200 trabalhadores foram resgatados de um alojamento em Bento Gonçalves onde eram submetidas a condições análogas à escravidão durante a colheita da uva para as vinícolas. Eles afirmam que eram extorquidos, ameaçados, agredidos e torturados com choques elétricos e spray de pimenta.

Os trabalhadores foram contratados pela Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda, que oferecia a mão de obra para as vinícolas Aurora, Cooperativa Garibaldi, Salton e produtores rurais da região.

Segundo o MTE (Ministério do Trabalho e Emprego), dos 207 empregados resgatados, 194 voltaram para a Bahia, quatro ficaram no RS e nove eram gaúchos de Rio Grande, Montenegro, Marau e Carazinho, que retornaram para suas cidades.

O responsável pela contratação dos trabalhadores chegou a ser preso pela polícia, mas pagou fiança e foi solto. As empresas que faziam uso da mão de obra análoga à escravidão devem ser responsabilizadas, de acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego.

As três vinícolas gaúchas se manifestaram conjuntamente para rechaçar as denúncias. As empresas estão entre os principais produtores de Bento Gonçalves. A Garibaldi afirmou que “aguarda a apuração dos fatos, com os devidos esclarecimentos, para que sejam tomadas as providências cabíveis”. A Salton lamentou os fatos e repudiou qualquer ato de violação dos direitos humanos. E a Aurora informou que repassa à empresa terceirizada um valor acima de R$ 6,5 mil mensal por trabalhador contratado e exige da terceirizada toda a documentação prevista na legislação trabalhista.

Boicote ou justiçamento?

“Luto no vinho brasileiro”. O debate em torno do caso derramou litros de polêmicas nas redes sociais. Para especialistas do setor, boicote não é a dose correta. “Acho prematuro, pois as investigações ainda estão em curso, e o boicote pode ser identitário, afetando a indústria como um todo e não só os possíveis culpados”, diz Marcelo Copello, um dos mais influentes jornalistas de vinhos do Brasil.

A Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos informou que suspendeu a participação das vinícolas Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton de suas atividades. O órgão é um serviço social autônomo vinculado ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, que promove os produtos brasileiros no exterior.

Para Copello, a medida deve causar pouca diferença em termos de faturamento. “O Brasil exporta muito pouco e tem pouca relevância no mercado internacional. Poucas vinícolas exportam e as que exportam têm um percentual muito pequeno de seu faturamento vindo das exportações. O mercado interno ainda é quase a totalidade.”

No calor do debate e na esteira do engajamento, o MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) aproveitou o momento para chamar a atenção para os sucos da Monte Vêneto, produzidos por cooperativas de trabalhadores de assentamentos de reforma agrária.

“Fizemos uma publicação no Twitter neste fim de semana falando um pouco das contradições entre capital e trabalho na produção nas vinícolas do Rio Grande do Sul”, escreveu a deputada estadual do PT do Rio de Janeiro, conhecida como Marina do MST, no Instagram.