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A quem interessa a mentira do porteiro?

Você está preso numa cela com duas portas, uma das quais leva à liberdade. A outra leva à morte. Cada uma delas é vigiada por um porteiro, sendo que um deles só fala a verdade e o outro só pronuncia mentiras. Você não sabe, porém, qual dos dois é sincero e qual dos dois mente. Tampouco sabe qual porta escolher para escapar com vida e só tem direito a fazer uma única pergunta, para apenas um deles. Que pergunta você faz?

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Foi o Zé Guilherme, meu antigo e querido professor de matemática, quem nos passou esse enigma numa aula. Eu costumava ser muito boa em matemática, o que pode ser surpreendente até mesmo para a Táscia de hoje, que não faz mais a menor ideia de como se resolve uma matriz ou um problema de geometria analítica, embora tenha fechado a prova do Pism 3, o vestibular seriado da UFJF, cujas duas questões abertas tratavam exatamente desse conteúdo. Exatamente é um paradoxo, porque sou de humanas. Humanamente, porém, também gostava de lógica, que pode ser tanto matemática quanto filosofia. O Brasil de hoje, certamente, desafia ambas.

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Lembrei-me desse exercício proposto pelo Zé na última segunda-feira (24), ouvindo o podcast “Desculpe o transtorno”, da escritora Tati Bernardi e do psicanalista Christian Dunker. No episódio desta semana, a ouvinte que enviou seu relato contou sofrer de síndrome da impostora (ainda que ela não tenha usado esse nome) e confessou que mente.

Se alguém diz “eu minto”, está mentindo ou dizendo a verdade?

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Pergunta filosófica, mas que também remete a um caso bem real: a quem interessa a mentira (mentira?) do porteiro?

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Uma das mais tradicionais teorias do jornalismo, que estudei no segundo período da Faculdade de Comunicação com a professora Teresa Neves, é do gatekeeping. Para serem divulgados, de acordo com o valor-notícia, a linha editorial ou outros critérios (geralmente político-econômicos), a informação e/ou o fato passariam antes por uma “porta”, da qual assessores (de um lado) e pauteiros, repórteres, editores, diretores de redação ou até donos de veículos (de outro) seriam os gatekeepers, ou os porteiros.

Talvez devesse, mas não estudo teoria do jornalismo há bastante tempo e, por isso, não faço ideia do que há de superado ou não nesse conceito, até porque jornalistas e veículos de produção jornalística não são mais detentores exclusivos de informações que, mesmo que eles tentem barrar na porta, entram aos montes na vida das pessoas, sem pedir licença, pelas janelas das redes. O que posso afirmar, contudo, é que mesmo na redação de um jornal, onde, supostamente, esperaria-se que imperasse a verdade, existem porteiros que mentem.

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O mesmo enigma seria possível depois que à verdade se somou o prefixo pós e que a mentira ganhou o nome gringo de fake news?

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Já li notícias sobre gente que, sob efeito de remédio, picotou o próprio cabelo. Que mandou mensagem indevida para o/a ex. Que gastou uma fortuna no cartão de crédito, sem se lembrar. Que teve vontade de comprar uma lhama. Mas notícia de gente que, por reação medicamentosa, compartilhou notícia falsa sobre fraude eleitoral, hoje foi a primeira vez.

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Entre o primeiro e o segundo turno das eleições de 2018, encontrei na rua um conhecido, bem-sucedido empresário e comerciante de Juiz de Fora, que disse que não votaria em Fernando Haddad  (PT) por causa do tal do — inexistente (como fica pobre um texto num tempo em que é preciso dizer o óbvio)! — kit gay. Esse que é um dos maiores contos da carochinha eleitorais dos últimos tempos é motivo de deboche até para quem o criou, conforme se pode ouvir no episódio “Narradores não confiáveis”, do podcast Rádio Novelo Apresenta, em que a jornalista Carol Pires entrevista um inventor e disseminador profissional de notícias falsas.

É risível, mas também, e sobretudo, bastante assustador.

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Haddad defende tanto o liberalismo econômico quanto certamente o faz esse conhecido empreendedor. O petista nunca escondeu o fato, que tem ficado evidente por sua atuação no comando do Ministério da Fazenda. A divergência entre o ministro e esse empresário juiz-forano está provavelmente, portanto, na preocupação social. O ministro sempre disse tê-la. Quem, naquela ocasião, votou no adversário de Haddad e continuou votando em 2022, dessa vez contra o presidente Lula (PT), ao revés, jamais terá. Mas prefere continuar disfarçando a própria falha moral com pautas morais delirantes.

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O deputado federal Deltan Dallagnol (Pode-PR), ex-procurador lavajatista convicto de seu power point, virou notícia na última terça-feira (25) por publicar fake news para se posicionar, olha que coisa!, contra o PL das Fake News.

O Projeto de Lei 2630/20, cuja urgência foi aprovada na terça pela Câmara dos Deputados, é uma das matérias mais importantes em votação no Congresso Nacional, extremamente necessária para regular as redes sociais/aplicativos de mensagem e responsabilizar as plataformas pela disseminação de notícias mentirosas (e quiçá perigosas, haja vista os conteúdos criptofascistas e as ameaças de ataques a escolas).

Para Dallagnol, contudo, ela vai censurar versículos bíblicos, como Colossenses 3,18 ou Efésios 5,22, praticamente idênticos: “Vós, mulheres, estai sujeitas a vossos próprios maridos, como convém ao Senhor”. Ou Levítico 20,13: “Quando também um homem se deitar com outro homem, como com mulher, ambos fizeram abominação; certamente morrerão; o seu sangue será sobre eles.” Ou Provérbios 23, 13-14 “Não retires a disciplina da criança; quando a fustigares com a vara, nem por isso morrerá. Tu a fustigarás com a vara, e livrarás a sua alma do inferno”.

O ex-procurador alegou que não se trata de informação falsa, uma vez que os respetivos trechos poderiam ser enquadrados como conteúdos misógino, homofóbico ou violador do Estatuto da Criança e do Adolescente. Não sei se podem, mas deveriam. Para ele, entretanto, não há problema em ser misógino, homofóbico e violador do ECA, desde que textos religiosos, escritos milênios atrás sigam na ponta da língua, tratados como incontestes.

Acontece que as pautas morais delirantes, assim como a fustigação do pavor contra a pretensa existência de uma “perseguição cristã”, são uma estratégia política de dominação ideológica pelo desrespeito e pela violência. Gente como o deputado do Podemos acusa o PL 2630/20 de PL da Censura, mas, fossem eles os porteiros, a porta da liberdade jamais seria aberta.

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Foi o também deputado Guilherme Boulos (PSOL-SP) quem questionou no Twitter, sobre a bizarra postagem de Dallagnol: “Quem poderia imaginar que a República de Curitiba ia seguir o modus operandi da milícia do Vivendas da Barra?”. É que direitos humanos, como fica evidente, não são o forte de nenhuma das duas. Pelo contrário. São seus inimigos. E a verdade é um direito humano, não é?