Consagrada pelo funk e pelo rap, que predominam em seus trabalhos anteriores, Mc Xuxú experimenta outras possibilidades musicais em “Mavamba”, seu novo EP, que chega a todas as plataformas de streaming hoje, dia 11 de agosto. As duas faixas já lançadas, “TRAVESTY” e “Cinderela do Gueto”, caminham para o brega funk, vertente que a cantora ainda não tinha explorado.
“Quis mudar, servir uma outra coisa para meu público e experimentar variações dos ritmos que eu faço mesmo. No Mavamba eu misturo tudo, dos ritmos, às participações de artistas, e todo mundo que participou compõe também, exceto o Caetano (Brasil, instrumentista). Tem músicas em que eu canto só o refrão e a pessoa convidada canta mais. A Bixarte, por exemplo, tem 21 anos, conta que cresceu ouvindo minhas músicas, e participa desse álbum. Assim como a garota X, que foi uma precursora, e que eu assistia cantando na Furacão 2000. É incrível poder reunir tantas coisas e pessoas num trabalho, gente que me admira e que eu admiro”.
Em muitos sentidos, “Mavamba” é uma celebração das identidades LGBTQIA+, sobretudo as T, a começar pela escolha do nome, feita por Xuxú, e que no pajubá (quem ainda não sabe o que é, vale o Google) quer dizer “malandra, marginal”. “É uma palavra que não vai ser questionada por pessoas trans periféricas, quem tem que procurar o significado são cisgêneros, que vivem numa bolha em que não deixam caber a gente”, dispara a cantora.
“Levo as pessoas junto comigo”
“Mavamba” começou de forma independente, quando Xuxú teve a ideia, no início da pandemia, fazer uma ‘mixtape’, misturando composições inéditas e outras escritas há tempos, que foram guardadas e passaram por uma releitura. O EP começou a ser feito de forma independente, e ganhou um gás enorme quando foi aceito no edital. “Para mim, isso é muito importante. O Edital Fernanda Müller de Cultura Trans é o primeiro espaço legitimado que a gente tem na cultura. Outras curadorias nem levam em conta quando você apresenta funk, que não é visto como cultura, ou quando tem uma travesti preta periférica como artista. Além disso, a Fernanda foi uma pessoa fundamental pros nossos direitos em Juiz de Fora”.
As faixas inéditas também passeiam por referências diversas. Enquanto “Lençol Bagunçado” e “JOG4” flertam com o trap, a faixa bônus, “Tem que sustentar”, capta tendências do universo ballroom e se inclina para o vogue beat. O álbum é recheado de participações: Aik4, Bixarte, Boombeat, Dona Chapa, Caetano Brasil, Laura Conceição, Mulher Banana, MC Trans, Wally. “Eu começo no coletivo, na PZP (Posse Zumbi de Palmares, coletivo de hip hop formado na periferia de JF). Então, quando alguém recebia convite pra ir a uma escola ou fazer um show, a Adenilde (Petrina), fazia questão que fosse todo mundo. Eu aprendi isso, sei que tenho um nome de peso hoje, e pra mim é importante saber que as pessoas podem contar comigo, que eu levo as pessoas junto comigo.”
‘Para as coisas estarem assim, precisei gritar muito “Um beijo pras travesti”
Algumas boas vezes entrevistei Mc Xuxú ao longo de seus 15 anos de carreira, infelizmente nem sempre para falar de seu trabalho. Violência policial, transfobia e falta de espaço e recursos para uma “travesti preta e da periferia fazendo funk”, como a própria diz, foram temas de conversas nossas ao longo dos anos. Mas não desta vez.
A cantora, hoje radicada em São Paulo, reconhece “Mavamba” como seu disco mais autoral até o momento. Não apenas pelo fato de trazer faixas que “despertaram de novo a compositora em mim”, como Xuxú aponta, mas também pelas escolhas artísticas e técnicas. “Eu sempre ouvi muito minhas equipes, principalmente as pessoas mais próximas. Se a Paulinha, minha amiga e diretora, dissesse que era melhor fazer X, eu fazia sem nem pensar. No Mavamba, eu sinto que bati mais o pé com as minhas escolhas, mesmo sem saber se elas são as melhores, as mais comerciais. Estou mais segura”, revela Xuxú.
A voz ao telefone confirma esse momento de segurança profissional e pessoal. Comento com ela sobre essa maturidade, de poder ver a obra em perspectiva, poder fazer escolhas, poder finalmente viver de sua arte, algo que era um sonho.
“É difícil as pessoas acreditarem, mas até o ‘Senzala’ (primeiro álbum de Xuxú), precisei sempre fazer um corre por fora, só a arte não me sustentava. Eu ganhei dinheiro com “Um beijo” (seu maior hit, conhecido em todo país e trilha de produções da Netflix, por exemplo)? Sim, mas gastei tudo. Quando não se tem educação financeira, isso acontece, né? Tive acesso a lugares que nunca tinha ido, a coisas que nunca tinha comido, uma vida que o dinheiro proporciona, mas acaba. Consegui fazer esse hit sustentável e atemporal, nada depois teve o mesmo alcance. Mas hoje, cheguei a um ponto em que me sustento, banco minha casa, minhas contas, me alimento… não preciso me preocupar se vou ter a refeição de amanhã.”
Essa estabilidade permitiu que a artista explorasse mais possibilidades criativas em Mavamba, primeiro trabalho em que, segundo ela, suas composições abordam temas como sexo e tesão, num tom menos ‘militudo’ que ela reconhece em sua obra. “Eu vejo umas manas mais novas dizendo que ‘não vão militar’, ‘a militância sou eu ́, não sei o que…. Mas para as coisas estarem assim, eu precisei gritar muito ‘Um beijo pras travesti!’ E hoje eu vejo isso, fiz um nome, estou num lugar em que posso falar do que quero, mudar de ritmo. Eu tava pensando… fiz 35 anos, que é a expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil. Será que já sou idosa? Ao mesmo tempo, minha vida como é só começou depois da transição, uns 17 anos atrás. Mas se fiz um nome e enquanto estou aqui, posso falar de sexo, mudar o ritmo, cantar sentada, em pé… fazer a Madonna, a Alcione, A Elza cantando sentadinha, o que eu quiser.”