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Causa mortis: negro

Prometi para mim mesma, desde a semana passada, escrever sobre amamentação. Sobre a importância do aleitamento materno. Sobre como cada gota que se derrama é necessária. Mas, de dourado, agosto se fez cinzento. Outras gotas se derramaram e o leite com o qual eu queria brindar virou leito. De morte.

Na terça-feira (8), vi um homem negro pedindo que alguém comprasse uma lata de leite para o filho no Centro de Juiz de Fora. No domingo (6), um menino negro de apenas 13 anos foi executado pela polícia na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. Na casa do homem que vi, talvez uma criança estivesse chorando de fome. Na imagem que a fotógrafa Selma Souza registou para o Vozes da Comunidade, crianças choram com um outro tipo de fome. Na primeira história, fome causa dor. Na segunda, dor causa fome: a de justiça por Thiago Menezes Flausino, mas também aquela por um País em que meninos pretos estejam livre dessa violência, em que não estejam sujeitos a esse desamparo.

Lembro-me de, 24 anos atrás, observar o choro doído da minha prima Júlia no velório do meu avô e pensar que uma criança tão pequena não deveria estar ali, chorando a morte de alguém. O primeiro contato da Júlia com a morte, porém, foi natural. Meu avô nasceu, cresceu, teve filhos (e uma de suas filhas teve uma filha, que teve outra filha) até chegar ao momento em que a Júlia sofresse, pequenininha, sem compreender direito, pela partida do bisavô.

O contato das crianças retratadas na foto de Selma com a morte é de outra ordem. Certamente não é natural, provavelmente não é o primeiro, e esses dois fatos tornam-no ainda mais incompreensível. O que explica que, para uma delas — para tantas delas! — a hora da morte não seja determinada pelo relógio, nem pelos supostos desígnios do destino, nem pelo curso normal de um corpo ao qual se dá o direito de envelhecer? O que explica que, em vez disso, a hora de morte seja anunciada pela cor da pele? O que explica que, na tabulação do Censo, na pergunta sobre identificação étnico-racial, a resposta de 56% das pessoas possa ser traduzida como “aquela que primeiro vai morrer”?

Vou usar este espaço para reproduzir o que o ator e escritor Paulo Vieira escreveu sobre a foto de Selma Souza:

“A polícia matou mais uma criança. Ela tinha 13 anos e se chamava Thiago Menezes Flausino. Ele foi executado quando já estava caído no chão. A PM já está na terceira versão do que aconteceu: Primeiro disse que um “criminoso” foi ferido em confronto; Depois disse que o ““criminoso”” atirou contra agentes. Agora disse que, na verdade, o adolescente (não mais o criminoso) apenas estava na garupa de uma moto de onde pode ter vindo algum disparo, e que ele já caiu morto (a família tem vídeo provando a execução). Quantas versões a polícia vai levar pra chamar Thiago de criança? Num país superlotado de “meninos” de quase 40, ser criança é um direito negado para o povo preto. Criança é pura e inocente, e a necropolítica não pode parar de animalizar o preto ou abrir mão do estereótipo do moleque cruel e bandido pra continuar matando o nosso povo. Esse menino lá de trás tem um olhar. Esse olhar é meu também. Eu tô com pneumonia e uma amiga ligada em terapia holística (sei lá) me disse “problema no pulmão é mágoa… você precisa se livrar da mágoa” e eu te pergunto: COMO? Esse menino aí tem um olhar. Esse olhar é meu também. Queria dar um abraço nesse menino. Queria tá lá pra olhar com ele. Só pra olhar junto com ele porque esse olhar é meu também.”

Ou nas palavras da própria fotógrafa:

Essas crianças  não deveriam estar sentindo tanta dor com a perda de  seu amigo.

Até quando faremos esse tipo de cobertura?

Que merda escrever este tipo de artigo.