Polytheama

Janela Indiscreta em Tempos Estranhos

Em Greenwich Village, Nova York, L.B. Jeffries — um fotógrafo Profissional, interpretado por James Stewart, em “Janela Indiscreta”, de Alfred Hitchcock, – confinado em seu apartamento, por ter quebrado a perna, enquanto trabalhava, fotografava as janelas e vasculhava a vida de seus vizinhos, e descobre um crime. De uma janela lateral de um quarto de hospital, onde Juliana, “mulher progressista, feminista e outros istas politicamente corretos”, observa o vai e vem de pessoas, durante o inferno do tratamento tradicional contra a Covid 19, conclui um futuro distópico de “um mundo mau”. Pela janela envidraçada de um prédio em Brasília, Camila, uma “deusa”, concentra sua onisciência e onipresença naqueles tempos bicudos da pandemia. Daniel Giotti também confinado durante a maior crise sanitária do mundo e maior negligência e irresponsabilidade de um governo — para dizer o mínimo — numa janela de lembranças, histórias e ficções, vasculhou muitas vidas — reais ou ficcionais. Até de uma gata (felis catus).

Esse pode ser o resultado de “Tempos Estranhos e Outros Clichês”, livro lançado por Giotti, em julho passado. O autor, no entanto, reúne — no que ele define como micronarrativas, textos pequenos para serem contos, ou extensos, para crônicas — histórias que nos levam a um universo de almas moldadas a uma sociedade de valores questionáveis. Um mundo que chega próximo — ou estaciona — no mundo rodriguiano de “A vida como ela é”. Até mesmo durante um imaginário encontro entre Drummond e Fernando Pessoa.

Sim, é provável que todas as contradições das almas viessem à superfície naquele momento de medo, pavor e horror da pandemia da Covid-19. Momentos que nos conduzissem à distópica imagem de um mundo mau, governado por pessoas más e protagonizadas por hipócritas.

Mas auto lá! De sua janela lateral, Daniel Giotti não nos traz mortos-vivos, ou seres replicados em laboratórios, perambulando pelas ruas, caçando humanos para nos inocular o vírus – ou o chip – da distopia redigida nas fake news do poder da época.

Ao contrário, num texto leve, de fina ironia, divertido e cativante, Giotti nos chama para, juntos, observar, pela sua janela lateral, nossas contradições e de toda a sociedade. É um convite tentador quando passamos a observar nossos vizinhos de janela, como L.B. Jeffries, em “Janela Indiscreta”, ou como Nelson Rodrigues em sua coluna “A vida como ela é”, no extinto jornal “Última Hora”. Só que com um tom mais suave e com cores menos mortais, como as pintadas no crime escrito por Hitchcock ou pelo governo da época durante a pandemia.

A cada texto, vemos personagens e situações que nos remetem a momentos vividos. Em “Rodriguianas”, em “outros clichês”, uma reunião de mulheres e outra, em reuniões de políticos num bar, quando tiram suas roupas sociais e abrem seus corações e sexismos, num debate sobre suas preferências e desejos, o universo de Nelson Rodrigues é trazido até nós numa forma menos dura, mas tão contundente quanto.

“Tempos Estranhos e Outros Clichês” é isso: uma provocação leve, sutil sobre nossas almas e de nossa sociedade num momento em que o futuro era uma incógnita, se é que ele existia naquele momento. É também uma reflexão. Uma reflexão para a qual a chamo Juliana: “Pela janela lateral, forçando os olhos, ela só quis tentar ver nas faces de um homem que parecia olhar para o hospital se ele estaria velando alguém de dentro, estando lá fora, imaginando o que se passava ali, especificamente no quarto, ou, como os homens que saíram da caverna, também percebia o novo mundo por aquela janela.

De outra perspectiva, mas igualmente vendo um mundo novo: um mundo mal”.