A vida dos outros

Angola tem um rei, e ele está no Brasil para cumprir a vontade dos seus ancestrais

Tchongolola Tchongonga Ekuikui 6º, o rei do maior grupo étnico de Angola, visita o Rio de Janeiro (Foto: Babi Reis)

A Pequena África amanheceu diante de um rei. Tchongolola Tchongonga Ekuikui 6º, o rei do maior grupo étnico de Angola, veio ao Rio para um encontro ancestral. Em sua primeira vez no Brasil, ele participou de um debate no Muhcab (Museu da História e da Cultura Afro-Brasileira), Gamboa, sobre a importância da reparação histórica para os povos negros do Brasil. O encontro aconteceu na manhã desta terça-feira (07/11), a convite da Secretaria Municipal de Cultura via DiversaCom em parceria com a UNIperiferias.

A escravização no Brasil durou 400 anos. Foram quatro milhões de pessoas escravizadas, sendo 60% vindos de Angola. Mais de um milhão chegaram pelo Cais do Valongo, na região da Pequena África, hoje Patrimônio da Humanidade pela Unesco. O maior porto de escravizados do país. Entenda por isso um encontro ancestral, de um povo separado pela escravização.

O papo “Futuro ancestral – História, reparação e avanço” foi mediado pela jornalista Louise Freire e pelo professor doutor Babalaô Ivanir dos Santos. A anfitriã foi a diretora do Muhcab, Sinara Rúbia.

“Chegou o momento de nos unirmos e completar a vontade dos nossos ancestrais”, disse Sua Majestade, na língua umbundu, a segunda mais falada em seu país, depois da portuguesa.

O rei foi recebido no palco sem aplausos – uma questão protocolar – saudado por Louise Freire, que abriu a bateria de perguntas a ele sobre os efeitos da escravidão em seu povo.

“Aos 7 anos já ouvia sobre os povos ancestrais. Éramos um reinado organizado, com ministros, tudo estava bem. Quando chegou a primeira fase da colonização foi o momento mais difícil. O colonizador não respeitou nossa tradição, cultura, o poder tradicional. Isso fez com que muitos reis africanos fracassassem, levando o colonizador a entrar em todo o continente africano”, comentou Ekuikui.

O Rei de Angola pontuou mais dois momentos lamentáveis em seu país: a guerra civil iniciada em 1975 (o ano da “independência”) e os tempos atuais com a globalização.

“Nossa foco agora é reencontrar e reestabelecer nossa identidade cultural. A globalização destrói tudo aquilo que é nosso. Identidade cultural, língua, monumentos…” 

Em sua fala, Tchongolola Tchongonga Ekuikui também desmistificou narrativas históricas e falou em resgate.

“Se alguma vez disseram que os negros nascidos no Brasil eram filhos de escravizados é mentira, são filhos de reis e rainhas africanos. Eu vim cumprir uma profecia e reencontrar a vontade dos nossos ancestrais, que sempre souberam que precisávamos lutar com a sabedoria para alcançar a via mais segura para chegar ao triunfo.”

Mas como Brasil e África podem caminhar juntos para atingir este avanço? “Enquanto houver misticismo, essa amizade não vai acontecer de fato. Precisamos de uma mudança muito rápida. Somos mal interpretados, se eu deixar meu cajado aqui ele fica por anos.”

O mito do fim da escravização, cultura e pluralidade religiosa

“A escravização acabou no papel, mas o racismo e as diferenças persistem”, afirmou Tchongolola Tchongonga Ekuikui.

Nesta região, lembrou Ivanir dos Santos, “debaixo desse solo tem milhares de pessoas encerradas, um território sagrado onde também floresceu nossas resistências. Seja cultural, Tia Ciata com o samba, seja em outras frentes, lugares de práticas religiosas etc”.

Diretora do Muhcab, Sinara Rúbia esquentou o debate perguntando ao Rei sobre o tratamento às mulheres em seu reino. “A mulher é criada para ser mulher, e o homem para ser homem. Uma mulher nunca vai orientar o homem a lavar a louça em meu povo.”

“Uma questão cultural”, ponderou Ivanir dos Santos, que deu início ao encerramento do encontro propondo um decreto real para conceder cidadania a descendentes afro-brasileiros que se reconheçam como kimbundu.

Após um almoço no Muhcab, Sua Majestade – 37º da sua linhagem – participou de uma caminhada até o Cais do Valongo. Mais um destaque na programação especial para o mês da Consciência Negra, elaborada pela Prefeitura do Rio – via Secretaria de Cultura.

O Muhcab fica na Gamboa, sendo um dos 15 pontos da Pequena África. Ainda no Novembro Negro, uma série de atrações está na agenda do museu, entre rodas de conversa e de samba, incluindo um papo com Silvio Almeida (Ministro dos Direitos Humanos) e Anielle Franco (Ministra da Igualdade Racial). A maior parte das atrações é gratuita. A programação está no Instagram @cultura_rio.

Nessa quarta-feira (8), pela manhã, o Rei Tchongolola Tchongonga Ekuikui 6º participou de um seminário sobre cultura e pluralidade religiosa na UNIperiferias, na Maré. A favela da Maré é a região onde se concentra o maior número de escravizados e imigrantes angolanos que vivem no Rio de Janeiro. À tarde, o monarca foi ao encontro de quilombolas no Quilombo no Camorim, o mais antigo do Rio de Janeiro. O local foi ocupado por pessoas escravizadas trazidas de Angola.

A visita ao Brasil começou por São Paulo, onde visitou o quilombo Cafundó, a cerca de 12 km do centro de Salto de Pirapora, no interior paulista, onde moram 135 quilombolas.

Angola é uma república, portanto o poder político e de estado é do presidente. No entanto, o rei dos ovimbundus, etnia predominante no país, detém importância cultural e espiritual principalmente na região do Bailundo, no planalto central angolano.