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Colunas

Hoje tem espetáculo? Tem sim, senhor!

Panis et circensis era sinônimo de feras devorando pessoas na arena enquanto o duro e resistente pão romano era arremessado para a plateia. O espetáculo era o ópio do povo e o banquete de muito tigre. Os felinos, assim como elefantes, macacos e até cachorros foram alijados das apresentações e hoje frequentam espaços mais adequados a uma vida animal saudável.

Sem os bichos, o circo precisou se apoiar em um dos seus veios mais teatrais, a origem na Commedia dell’Arte. Movimento de saltimbancos que durou três séculos na Itália, os canevacci, textos que orientavam as peças, eram recheados de acrobacias para entreter a plateia. Muitos dos atores saíam estropiados e com figurinos rasgados de tanta estripulia.

O tempo trouxe trapézios com redes, cordas de segurança, cintos e amarras. E brinquedos mais perigosos, como o globo da morte ou as invenções de moda de tirar a rede de proteção para dar emoção à cena. O que é feito no picadeiro já é arriscado demais, não precisa de mais ousadia. Quase toda a prateia certamente teria uma torção, uma câimbra ou romperia um ligamento se tentasse copiar os contorcionismos. Ou teria hematomas brincando de palhaçaria.

Assim segue o circo, tentando se manter de pé com números que se repetem por séculos, somando novas alternativas líricas e tecnológicas. O Cirque du Soleil exportou do Canadá esse outro formato espetacular, repleto de música, coreografias, encantamento, efeitos visuais e um blend de acrobacias, balé, teatro e showbizz. Aos pequenos circos fica a correria para sobreviverem.

Outra faceta está nas escolas de circo. Se por um lado ajudam a popularizar as artes circenses, por outro geram o Efeito Mister M: se todo o bastidor é revelado, cadê a magia? A criança entra numa lona e vê os malabares do sinal de trânsito, a moça rodopiando no pano igual a tia faz (no pano ou no ferro) e o palhaço numa perna de pau que o panfleteiro da casa de roupa de cama usa na esquina do parque.

Todas as exportações são legítimas, expressões artísticas que as pessoas usam para se exercitar ou para o ganha-pão. A sacralidade da lona é que não pode ser rompida: não é o cara jogando pinos no circo que é igual ao do sinal, mas o contrário. Essa história precisa ser contada.

O casal que se joga nos braços um do outro dando saltos mortais em um trapézio e a moça que dança no ar pendurada pelos cabelos dificilmente serão vistos pela rua nas mesmas condições. O moço das bolinhas quicando, hora três, hora dez, talvez as jogue na frente do seu carro, mas com a pressa de acabar. Sob os holofotes cada um tem o seu tempo, a sua música.

E tem o palhaço. O alívio cômico da tensão entre os números. Ou a tensão perversa em meio às danças. A cada coreografia encantadora vem o tropeço do cabelo colorido e do nariz vermelho. Sozinho ou com a plateia (às vezes levada ao picadeiro), ele empilha signos quase sem nem precisar falar.

Todo esse pessoal mora no circo. Viaja, monta acampamento, divulga o espetáculo, ensaia, estuda, repete tudo várias vezes por dia, sempre com o risco de como se fosse a primeira vez. Quem não está no picadeiro corre para vender pipoca, água, cerveja, balões. E precisa cobrar caro para poder viajar mais, trabalhar mais, e ainda ceder espaço para personagens midiáticos no intervalo, pessoas que, por mais que sofram o calor de fantasias de Disneys e Bitas, não requerem mais do que isso para roubar a atenção das crianças midiatizadas.

Se o poder público, em todas as instâncias, tiver sua reserva para investir no circo, o ingresso pode ficar mais barato e mais gente vai se encantar. Circo nunca foi privilégio, corria cidades grandes e pequenas, fazia pessoas quererem fugir com ele, de tão mágico. Quanto mais gente puder entrar naquela lona encantada, mais fugas acontecerão e a família do circo cresce e vai mais longe. Arrisque-se, vá ao circo.