
A chegada da Corte portuguesa ao Brasil, em 1808, transformou o Rio de Janeiro em polo comercial do Atlântico Sul e dobrou sua população. O impacto, porém, foi além da capital e alcançou Minas Gerais, onde a economia já se reconfigurava diante do declínio da mineração.
Com a produção de alimentos em alta, os mineiros tornaram-se parte essencial do abastecimento da nova sede do Império. No entanto, o crescimento do comércio esbarrou em um velho problema: a precariedade das estradas. Durante o período colonial, a Coroa restringiu a abertura de rotas para conter o contrabando de ouro e diamantes.
A presença da Corte obrigou a reversão dessa política. Para garantir o abastecimento do Rio, o governo passou a priorizar a circulação de mercadorias e a criação de novas vias. O episódio marcou uma virada: Minas deixou de ser apenas produtora de riquezas minerais para se tornar elo estratégico da logística imperial.
Foi nesse contexto histórico que surgiu o Caminho do Comércio, agora oficialmente reconhecido como patrimônio cultural e turístico de Minas Gerais. A medida foi estabelecida pela Lei Estadual 25.288, de autoria do ex-deputado João Leite, e sancionada nesta semana pelo governador Romeu Zema (Novo).
A criação do Caminho do Comércio remonta a 1811, quando, por determinação da Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação do Estado do Brasil e seus Domínios Ultramarinos, que havia sido fundada pelo príncipe regente Dom João VI, foi aberta uma nova estrada ligando Minas Gerais ao Rio de Janeiro.
Mesmo inacabada, a rota já era utilizada em 1817. Seu traçado encurtava em cerca de 18 léguas (aproximadamente 108 km) o caminho entre São João del-Rei e o Rio de Janeiro, a então Corte, funcionando como alternativa ao Caminho Novo, que seguia como a principal rota entre o interior mineiro e a capital do Império.
A rota do Caminho do Comércio tinha início em São João del-Rei, passando pelos distritos de Rio das Mortes e Cajuru, em direção a Madre de Deus de Minas. Dali, seguia por Andrelândia, Arantina (Espraiado), Bom Jardim de Minas (via Taboão) e Rio Preto (região de Funil e Varejas), entrando no estado do Rio de Janeiro pelo município de Valença, nos distritos de Parapeuna e Pentagna.
O trajeto continuava por Rio das Flores (Comércio), Vassouras (Massambará e São Sebastião dos Ferreiros), Miguel Pereira (Conrado) e Nova Iguaçu (Tinguá e Iguaçu Velho). Neste último ponto, existia um porto fluvial no rio Iguaçu, de onde as mercadorias seguiam embarcadas até a Baía de Guanabara, alcançando, por fim, o Rio de Janeiro.

Trecho remanescente do Caminho do Comércio em solo fluminense.
Saint-Hilaire percorreu a rota
As tropas que seguiam pelo Caminho do Comércio partiam de Minas Gerais transportando bois, porcos, toucinho, galinhas e queijos. No retorno, traziam do Rio de Janeiro produtos como sal, azeite, vinho, vinagre, bacalhau, lampiões, ferramentas e vidros.
Movimentada e estratégica, a rota teve importância reconhecida já no século XIX. Em 1819, o botânico francês Auguste de Saint-Hilaire percorreu o caminho durante uma de suas expedições científicas rumo às nascentes do rio São Francisco. Em seu diário, registrou que a estrada era usada principalmente para a condução de bois e porcos vindos da antiga Comarca do Rio das Mortes, com usa sede em São João del-Rei, para abastecer a Corte. Segundo ele, o trajeto era significativamente mais curto que qualquer outro disponível à época.
Potencial turístico
O promotor de Justiça Marcos Paulo de Souza Miranda, autor do livro Estudos Históricos sobre o Caminho do Comércio, em parceria com o historiador e oficial de justiça Rodrigo Magalhães, destaca a relevância da antiga rota como uma importante variante da Estrada Real. Em artigo publicado no blog Pátria Mineira, Marcos Paulo também ressalta o alto potencial turístico do trajeto. Segundo ele, ao longo do caminho há uma grande variedade de atrativos culturais, naturais e paisagísticos, ideais também para a prática do ecoturismo.
Entre os destaques, estão as cachoeiras e tanques de criação de trutas entre Rio Preto e Bom Jardim de Minas; a arquitetura colonial, os sítios arqueológicos e a produção local de frutas, doces, queijos e cachaça de qualidade na região de Andrelândia; além das fazendas e igrejas centenárias, serras e tradições folclóricas de Madre de Deus de Minas.
Apesar de seu valor histórico e turístico, Marcos Paulo alerta que o Caminho do Comércio ainda é pouco conhecido e carece de maior divulgação e investimento para se consolidar como destino turístico regional.

Na Fazenda das Laranjeiras, situada às margens do antigo Caminho do Comércio, no município de Andrelândia, ficou hospedado o cientista francês Auguste de Saint-Hilaire, em fevereiro de 1819.