Colunas

Semana de Arte Moderna. Onde estavam os artistas e intelectuais negros?

Capa do livro 'Pau Brasil' (1925), de Oswald de Andrade; Colagem de Ge Viana, em cartaz na mostra 'Brasilidade pós-modernismo'; autorretrato de Wilson Tibério, que estará na coletiva 'Raio-que-o-parta: ficções do moderno no Brasil'; 'Praga', de Beatriz Milhazes (também de 'Brasilidade pós-modernismo) e 'O touro', de Tarsila do Amaral (Foto: Reprodução)

Há 100 anos, um movimento artístico e intelectual chamou a atenção da cidade de São Paulo.  A Semana de Arte Moderna endossava um novo tipo de olhar para o Brasil ao consignar uma identidade ou identidades nacionais a partir da junção de composições étnicas e culturais para assim achar o Brasil de fato e o brasileiro na sua essência. Isso em um cenário até então insistente em subtrair da história tudo aquilo que não derivasse de um caldo cultural de viés europeu.

Nesse esforço de descobrir os elementos da mestiçagem, as raízes da cultura nacional através dos regionalismos, dos aspetos que enalteciam o povo e seus traços, os modernistas rompiam com o tradicionalismo artístico de calibre eurocêntrico e seus padrões estéticos alheios à brasilidade para promover um novo momento. Havia uma sociabilidade urbana latente, ao sabor de uma modernidade cada vez mais incompatível com a belle époque aos moldes parisienses que forçadamente insistiam em introduzir nos trópicos.

Na década de 1920, imersas às frustrações e inquietudes do projeto republicano, chegara a hora de encarar a realidade das coisas. O Brasil não iria embranquecer, pelo contrário, se manteria majoritariamente mestiço e negro. Havia a necessidade de rever o projeto de nação e povo sem, contudo, abalar o “Antigo Regime” colonial com seus estratos socioeconômicos temporalmente bem definidos.

Não se pode, porém, não é devido, resumir o movimento modernista à Semana de Arte Moderna e seus anfitriões reunidos no Theatro Municipal de São Paulo entre 13 e 17 de fevereiro de 1922. O modernismo foi muito além, muito mais extenso em suas estéticas, procedimentos, estilos e comportamentos. Havia, obviamente, em comum a percepção da necessidade de reinterpretar o Brasil e nele enxergar os costumes do povo, as efemérides cotidianas, a realidade das coisas ao redor, das gentes dos sertões e suas regionalidades, dos citadinos errantes, do operariado em formação, dos baques e batuques dos morros, das florestas e dos indígenas.

Contudo, o modernismo não foi capaz de romper com a invisibilidade e o preconceito ao, senão ignorar por completo, menosprezar a presença dos artistas negros em seu meio, como Lino Guedes, Lima Barreto, José do Patrocínio, entre outros. De não dispor de expediente suficiente entre as vanguardas para dar conta da importância da expressão negra no protagonismo de um movimento com a pretensão de ressignificar sob a ótica artística e intelectual, padrões preestabelecidos.

Detornar-se novo, moderno, com uma crítica contundente à forma como o povo negro e mestiço encontrava-se excluído em direitos e cidadania. A considerar por esse ângulo, não incorporaram à modernidade e seus arquétipos um movimento político e social capaz de repensar a condição do negro na sociedade brasileira e mobilizar-se para reivindicar uma transformação contundente nesse sentido.

Reforçando a ideia acima, o movimento modernista, se conferirmos seu pioneirismo à década de 1870, não foi suficiente para transgredir a ordem vigente de segregação racial no país, mas somente, pelas décadas adentro e de forma bem-sucedida, sobrepor elementos artísticos, literários, teatrais e antropológicosinteressados em projetar uma sociedade mestiça, tal como pronunciavam, para dar conta de um novo contexto nacional. Um projeto modernizador capaz de subverter as hastes do conservadorismo senhorial, de infringir postulados patriarcais hierarquizados e assentados sob estruturas raciais não entrou na pauta no processo de modernização conservadora dos anos 1930 a 1970.

A presença de negros e mestiços no movimento modernista foi mais proeminente na capital do país. O Rio de Janeiro das primeiras décadas do século passado se apresentava como o bastião da modernidade. A cidade então se esforçava para transformar sua paisagem e inaugurar uma outra realidade, mais adequada a uma nova era republicana. Mas uma realidade das elites políticas, das camadas brancas privilegiadas ansiosas por transformar a capital em uma Paris nos trópicos embaladas pelas reformas urbanas de Pereira Passos.

Na outra face dessa modernidade, a intransigência com a qual o governo lidava com a população pobre, mestiça e negra, expulsa dos cortiços, marginalizadas em suas manifestações culturais e empurradas para as favelas no alto dos morros da urbs. Daí emergia uma modernidade mais peculiar, uma modernidade que pulsava em outra batida, a batida dos tambores, em outro ritmo, da dança malevolente dos corpos negros e envolventes das rodas de samba, do fascínio perigoso do bailar de pernas e braços capoeiras. A cultura modernista antropofágica em São Paulo, no Rio era africanizada e, portanto, indesejada e criminalizada.

Modernismos com o compromisso e a atitude de transgredir, mas uma transgressão consentida ou tolerada entre as elites paulistanas, por ser propugnada por segmentos dessa própria elite. E no Distrito Federal, uma transgressão marginalizada, criminalizada por enaltecer a mestiçagem e a negritude que gritava nos ouvidos de suas elites de herança escravagista, muito distante dos modus vivendi europeu. Importavam as grandes avenidas, imitavam os cafés e bulevares franceses. Mas não suportavam o tipo de gente que fervia nas ruas, nos botequins, nas feiras, nas praças e descampados com seus piqueniques pelas tardes de domingo. O modernismo foi capaz de criar uma certa interação, de aproximar representações da intelectualidade branca com as expressões da cultura negra e mestiça para dar substância a uma sociabilidade boêmia carioca, das Casas das Tias Ciatas.

Mesmo assim, essa interação era confrontada com o afã de buscar a todo modo uma branquitude ilusória e segregacionista, gerando uma territorialização violenta, um racismo estruturalizado como projeto velado de um Estado republicano que optou por renegar os corpos negros e suas culturas ao invés de garantir sua cidadania e a sua efetiva integração na sociedade nacional.  A trajetória de Lima Barreto é emblemática nesse sentido. Em suas obras, como o Diário Íntimo e Clara dos Anjos, fica evidente a exposição de todo o preconceito e discriminação sofrida pelas mulheres e homens de cor e que o próprio escritor literalmente sentiu na pele. Lima foi um arauto do modernismo boêmio carioca, está inscrito na história dos modernismos. Todavia, não é reconhecido com tal a meu ver. Como ironia da história faleceu no ano de 1922.

Nesse centenário da Semana de Arte Moderna, faz-se necessário pensar o papel das correntes artísticas e das atividades intelectuais como um instrumento de mobilização coletiva em prol de uma sociedade livre do preconceito racial e das discriminações empenhadas em rebaixar e humilhar as diversidades. Buscar elementos de nossa ancestralidade mestiça e negra outrora presentes nas vanguardas modernistas e que hoje continua fervilhante nas periferias, nas favelas e bairros populares, nas escolas públicas, movimentos sociais e coletivos e nas universidades, significa exaltar as personagens negras de nossa história cultural. Elas estão lá e não devem ser apagadas ou silenciadas.