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É Copa, acabou a política

Pronto, começou a Copa do Mundo de Futebol. Com maiúsculas, tamanha a espera. Atrasou, era pra ter chegado em junho, mas o clima no Brasil estava tão pesado que o pessoal resolveu adiar. O que importa é que chegou.

Quem já tava na torcida desde junho, vestindo verde e amarelo e cantando o Hino Nacional, já pode parar de pedir proteção ao exército porque agora tá todo mundo junto. Mão sobre o brasão da CBF, boca fingindo o Virandú e grito de gol pronto pra sair.

O entusiasmo deve ser menor nas crianças que pararam na frente da televisão com seus álbuns de figurinhas e não conseguem entender a ausência de correspondência entre muitas caras coladas e pessoas em campo. Fica a dica: recorta do jornal e cola por cima.

E lá vai, apita o juiz, começa o primeiro confronto e a galera que pintou as ruas e pendurou bandeiras já pode tirar a faixa “é copa, não é política” porque agora tudo é copa. É Copa!

E de cara dois gols de uma democracia sulamericana em cima de um emirado absolutista e hereditário do Oriente Médio. Dois gols marcados por Enner Valencia, camisa 13. A Copa começou bem.

No dia seguinte, um susto: Jude Bellingham e Bukayo Saka abrem a goleada inglesa sobre o Irã. E nem se levanta aqui a questão histórica de cada país, seus relacionamentos ou o direito da Inglaterra de fazer gols porque inventou o futebol. Os jogadores vestiam as camisas 22 e 17, respectivamente. No terceiro balançar de redes Raheem Sterling, da camisa 10, mostrou que não tinha nada a ver com política aquilo ali.

Falar em camisa 10 é falar do Pelé, o sujeito que consagrou a amarelinha e trouxe, junto com o elenco, três títulos mundiais pro verdelindo. Que acabaram se derretendo por aqui. E Pelé é negro, o que antes era proibido no futebol.

O Bangu escalou o primeiro negro pra jogar o campeonato carioca, Francisco Carregal, em 1905, mas foi obrigado a dispensá-lo ou teria que abandonar a Liga. Optou pela segunda alternativa. Título com elenco majoritariamente negro quem ganhou foi o Vasco, em 1923, e também obrigado a dispensá-los se quisesse fazer parte da associação criada por Flamengo, Fluminense e Botafogo no ano seguinte.

Um século depois, o futebol se tornou bem mais democrático, palavra que remete ao Corinthians, time do Lula. A famosa Democracia Corinthiana mudou a relação dos jogadores com o clube e envolveu o sociólogo Adilson Monteiro Alves (que era diretor de futebol do time), jogadores estudados (como Sócrates e Wladimir) e nomes importantes da comunicação nacional, entre os quais o publicitário Washington Olivetto e o jornalista Juca Kfouri.

Kfouri estava na mesa outro dia em que se discutia o envolvimento de Neymar, atual camisa 10, com Bolsonaro. Disseram que declarar o voto era direito dele, mas politizar o gol… aí não.

E lá está a Seleção Canarinho diante da Sérvia. Nas ruas, cena de filme de apocalipse: poucos carros, poucas pessoas, o vento soprando fraco e o barulho da cidade abaixo do comum. Foi assim no primeiro tempo, com a tranquilidade que o brasileiro merece depois de tantos meses de fortes emoções. Que as taquicardias fiquem pros embates políticos.

No segundo tempo os marca-passos tiveram mais trabalho. Sem alardear e sem politizar, Richarlison lembrou a frase de Jean Cocteau: “Não sabendo que era impossível, ele foi lá e fez”. Dois.

Gustavo Burla, 25-XI-2022