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Colunas

Amor sem fronteiras

A União e Indústria, no trecho entre Matias Barbosa e Juiz de Fora, é certamente a estrada por onde mais transitei na vida. Meu currículo acumula décadas e décadas sacolejando em ônibus desconfortáveis, neste percurso de cerca de vinte quilômetros. No entanto, apesar do incômodo, sempre achei esse cantinho da Mantiqueira de uma beleza ímpar. Tanto que, quando comprei meu primeiro automóvel, foi por aquelas bandas que decidi, antes de tudo, me aventurar.

Logo, apesar do carro que seguia vagaroso à frente, não me incomodava. Pelo contrário, aproveitava para melhor admirar as montanhas verdejantes naquela tarde ensolarada de domingo. No mais, não havia jeito, pois estava sendo guiado, já que não conhecia o destino, um sítio onde seria comemorado o aniversário de uma amiga.

Éramos cinco em meu carro e mais cinco mulheres espremidas no veículo da frente. Cinco senhoras cujas idades somadas facilmente percorreriam três quartos do tempo que nos separa do dia em que os portugueses tomaram posse da Terra de Vera Cruz.

A curta viagem progredia sem incidentes e se aproximava do fim, até que o veículo que seguia, inesperadamente, enveredou por uma saída. Como acreditava que nosso destino era mais à frente, acabei perdendo a manobra. Por sorte, uma centena de metros depois, consegui fazer o retorno.

Quando entrei na mesma direção, ficou evidente que o engano, não era meu, pois o curto caminho conduzia às portas de um motel. O carro delas estava parado na entrada. Cheguei a tempo de ver a atendente, olhos arregalados e esquecendo os protocolos de discrição diante do que pareceria prenunciar a orgia mais inusitada da história do estabelecimento, abrir a janelinha e perguntar: “As senhoras querem qual suíte? Já vou avisando que para cinco não vale esse preço que tá na tabela aí ao lado não! É mais caro!”. Enquanto isso, no banco do carona, a mais experiente das moças mantinha, do alto dos mais de noventa anos, um semblante calmo de olhos azuis, típico de quem não deve nada a ninguém.

Diante da cena inesperada, abaixei o vidro de minha janela e perguntei, incontinenti: “A festa vai ser aí? Ou vocês decidiram por uma programação alternativa?” A motorista respondeu, com uma voz desesperada: “Deixa de bobagem! Não vê que eu errei o caminho? E sai daí de trás para eu dar ré! Daqui a pouco dá fila nesse troço. Ai, meu Deus, o carro agora morreu…”

Chegando ao local da comemoração, pouco depois, não havia alternativa a não ser colocar os presentes a par dos acontecimentos recentes. Depois de escutar atentamente à narrativa, uma das filhas da anfitriã respondeu, expressando seriedade: “se vocês fizerem uma suruba dessas sem me convidar, nunca mais falem comigo!”

….

Tudo na festa exalava carinho e simplicidade. Demonstrando gratidão, os familiares da aniversariante decoraram o ambiente com objetos que lembravam a história da costureira de mão cheia, que chegava aos oitenta anos. Não faltaram pequenas lembranças da vida de luta, com destaque para as máquinas de costura, guardadas com respeito após receberem a merecida aposentadoria.

“Se lembrar de celebrar muito mais”, diz a letra de uma música do grupo O Teatro Mágico. Celebrar as amizades, os encontros, os amores, é compromisso dos mais sérios da vida. Até porque, a passagem por este plano é curta e incerta. Não sabemos se teremos outras oportunidades. Das cinco moças no carro, duas já se despediram. Naquele dia, entretanto, estavam felizes.

Eu também estava. Oportunidade rara para encontrar pessoas a quem não via há anos. Saber novidades, casamentos e nascimentos, vida que pulsa. Escutar a sabedoria de um velho amigo. E se fartar de boa comida, que ninguém é de ferro.

Celebrar as amizades, os encontros, os amores, é compromisso dos mais sérios da vida.

Na festa, entretanto, o que mais me encantou foi a diversidade. Mulher com opiniões sobre a vida formadas na labuta diária, a anfitriã conseguiu – a despeito disso – reunir em torno de si pessoas com percepções muito diferentes. Pessoas que sabidamente construíram convicções que por vezes se situavam em extremos opostos do olhar. Mas, ali estavam, confraternizando.

Num mundo em que maquininhas permitiram uma manifestação mais explicita de nossa tendência a nos cercarmos de iguais, a sabedoria dessa nordestina – e de alguns de sua geração –, com a capacidade de saltar sobre fronteiras e praticar a verdadeira fraternidade, tem muito a nos ensinar. A começar pelo exercício do Cristianismo na sua essência mais profunda, de amor aos adversários. Uma compreensão que lembra Paulo, quando afirmou: “Se alguém confia de si mesmo que é de Cristo, pense outra vez isto consigo, que, assim como ele é de Cristo, também nós de Cristo somos”.

A leitura dos escritos de Paulo deixa claro que uma das bases de seu pensamento é a valoração do diverso. Enfrentou muita resistência de quem se sentia eleito, exagerando as próprias virtudes, sem perceber as luzes alheias. Diante da cabeça dura dos que, com a despensa e a pança cheias de farofa e torresmo, arrotavam caviar, ultrapassou os limites da Galileia e foi pregar aos gentios. Mudou o futuro da humanidade.

Infelizmente, o tempo passou e, da proposta universalista de Paulo, acabou por de novo brotar o germe do exclusivismo, do aparte, dos autoproclamados eleitos. Mais que isso, levando o estandarte do Cordeiro – mantido de pé pelo sacrifício de multidões de mártires, jogados às feras rosnantes do circo romano – surgiu um cristianismo que rosna, espalhando dor pelo globo. Tivesse um dos adeptos desse cristianismo de dentes trincados, defensores de que ‘bandido bom é bandido morto”, encontrado Saulo antes do episódio da estrada de Damasco, jamais teríamos conhecido Paulo, o Apóstolo dos Gentios.

Baseados em evidências dessas posturas violentas e absurdas, muitos críticos do cristianismo se apressam em afirmá-lo como uma chaga. Cometem, no entanto, a injustiça de destacar a parte, omitindo o todo. É preciso lembrar que esses dois milênios produziram também Chico de Assis, Luther King e muitos outros. Produziram milhões de anônimos bons samaritanos. Milhões de viúvas incógnitas, mas que não se furtaram a oferecer seu óbolo, na forma de sacrifício e dedicação. Todos sob a sombra civilizadora do Cristo. Todos – tal qual minha amiga – adeptos de um amor que vai além de quaisquer fronteiras.