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Deus morreu na folhinha

(Foto: Gil Veloso/PJF)

Tava lá na folhinha pendurada na geladeira, junto com o salmo 23, dizendo que outro dia foi Corpus Christi. Para alguns. O professor não deu aula (tem gente alienada que acha que ele não dá aula desde março de 2020: um dia apresento um relato aqui, ou vários), mas na maior parte dos lugares o povo trabalhou, porque o patrão disse que “não é feriado, é ponto facultativo”.

No Carnaval, quando muita gente achava que era o auge da Covid… peraí, o contexto é importante.

Vamos fingir que o vírus tenha chegado no Brasil em março de 2020: muita gente se trancou em casa por dias ou semanas (se tivesse continuado assim por mais algumas semanas e talvez poucos meses, com apoio do governo, hoje estaríamos nos bares). Depois, por motivos diferentes, alguns foram saindo (patrão mandou, consciência mandou, algum deus equivocado mandou). Vai dar tudo certo! E nunca deu, pelo menos até agora.

Teve onda de contágio no Ano Novo (“mas eu tava me cuidando, não sei como peguei…”)

Teve onda no verão praiano (“mas eu tava me cuidando, não sei como peguei…”)

Teve onda na final do Campeonato Brasileiro (“mas eu tava me cuidando, não sei como peguei…”)

E não teve Carnaval.

Se a legislação diz o que diz, do outro lado a festa é um ritual. Carnaval é a festa da carne, nasceu antes do Brasil (foi a Europa que pariu, né?) e pertence ao rito religioso. E de repente o Brasil elege um líder com as igrejas e ignora a religião.

Teve escola que ignorou o Carnaval (o Carnaval!) e teve aula. Em Nova Orleans, o Mardi Gras para a cidade na terça-feira e comemora o Carnaval. Veneza desfila máscaras por ruas, pontes e cais para celebrar a festa da carne. O Brasil, que tem samba o ano inteiro, micaretas por meses, festas por dias… ignorou o Carnaval porque o vírus mostrou que o mercado é mais importante que a festa.

E assim os feriados se enquadram no lema ditatorial do ame-os ou deixe-os. O poder simbólico, expressão de Pierre Bourdieu, cabe muito bem nesse assunto, porque um feriado, uma data importante, individual ou coletivamente, existe por conta daquela data.

Quando alguém pergunta quando é seu aniversário você responde tanto faz? Deixa o outro escolher por você?

Cada dia tem nascimentos, óbitos, conquistas, derrotas, santos, guerras, pedidos de namoro. Cada dia. A festa pode ser depois, no final de semana, pra ter mais gente, mas o dia é o dia. Tem gente que não lembra do dia do pedido de namoro (que se vire com que foi pedido/a), mas ninguém esquece da data do Natal (independente de religião), da data de proclamação da república e do Dia do Trabalhador.

Trabalhar vai além da escravatura, do salário mínimo, do sacrifício em tempos de pandemia. O trabalhador merece respeito em sua profissão e em suas crenças.

Dia do Trabalhador, assim mesmo, com maiúsculas. E o patrão, ou os que endossam o comportamento da patronal, deturpam um dia mundial de luta para fazer manifestação na rua. Um dia que nasceu como feriado em Chicago por uma revolta que matou pessoas, menos do que a omissão cotidiana consegue eliminar, e que também tem um São José com padroeiro. Pessoas que endossaram o golpe em 2016, a reforma trabalhista e saem à rua no dia 1° de maio para apoiar o genocida, convenhamos, não sabem ler.

1° de maio é Dia do Trabalhador. Ele pode escolher ficar em casa ou ir pra rua protestar pelos direitos que lhe cabem ou deveriam. Em muitos países, como na França, diversos grupos, sindicatos, cidadãos conscientes festejam pelas ruas data tão importante. Que legal: festejam! A festa é lugar de discurso, de troca e de afeto. Quando essa festa não é permitida, o protesto ganha espaço. O protesto legítimo é de quem não teve a festa, não de quem impediu a festa. Se precisar explicar mais que isso, o leitor vai ser subjugado.

A revolta cresce com o tamanho dos parágrafos, melhor voltar à objetividade: mudar o calendário cotidiano para atender à Covid é ceder para além de valores sociais maiores que a vida de cada indivíduo.

Fôssemos sensatos enquanto governo, atitudes e discursos, teríamos parado por mais tempo, apoiados pelo poder público, pela ciência e pela noção de que a paciência maior naquele tempo seria premiada agora. Houve quem apoiasse, mas muitos reclamaram e estamos aí, pulando feriados, comemorando aniversários de morte e ignorando homens e deuses para trabalhar.

Trabalho, como concebia o mundo em crescimento industrial, é diferentes do trabalho de hoje, que leu autores defensores do ócio, do Marx que faz tremer as elites que não conseguem lê-lo ao Keynes que muitos endeusam sem saber o que escreveu. Trabalhar vai além da escravatura, do salário mínimo, do sacrifício em tempos de pandemia. O trabalhador merece respeito em sua profissão e em suas crenças.

Hoje é Dia dos Namorados, assim mesmo, com maiúsculas, do jeito que foi batizado pelo João Doria (pai do BolsoDoria). O comércio vendia pouco nessa época, precisava de um estímulo e o publicitário sugeriu a data de 12 de junho, véspera do dia de Santo Antônio, o casamenteiro, como ideal. Pelo visto as coisas eram rápidas em 1948, alianças prontas de um dia pro outro.

As lojas enfeitadas, as pessoas compelidas às compras e poucos se lembrarão do dia seguinte, do santo. A não ser em Juiz de Fora, onde ele é padroeiro e é feriado. Ou já foi. Será?

Em meio a tantas perdas simbólicas (o beijo no rosto, o abraço apertado e o aperto de mãos), alguns rituais precisam ser mantidos, até mesmo para sabermos nos situar cronologicamente em meio ao caos. Os dias não são números que se passam na folhinha, precisam de mais que isso, mas os homens de pouca fé (inclusive na vida, no homem e no que virá) que oram no altar do vil metal seguem a nos cobrar o dízimo de um dia de féria.

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