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Por uma vivência mais inclusiva

Você já parou para pensar em como uma pessoa surda participa das aulas online e tem acesso às notícias de sua cidade, de seu país ou do mundo? Já se questionou sobre como as pessoas cegas se movimentam, vão ao cinema ou acompanham o telejornal? Alguma vez já se questionou o que poderia ser feito para prevenir acidentes com as pessoas sem olfato, que não conseguiriam sentir o cheiro de queimado ou um vazamento de gás? Se você nunca parou para pensar sobre nada disso, talvez seja o momento de trabalhar a sua empatia e de ler este texto até o fim.

Recentemente, milhares de brasileiros e de pessoas ao redor do mundo têm apontado um sintoma em comum após serem diagnosticadas com Covid-19: não sentem mais o gosto da comida ou o cheiro das coisas, ou perderam os dois. Para alguns, será temporário, para outros, pode demorar mais. Ainda há aqueles que podem vir a lidar com tal perda o resto da vida. Este foi o caso da minha mãe. Mas ela não teve Covid. Muitos anos antes da pandemia, ela sofreu um acidente: foi atropelada por um ônibus e felizmente sobreviveu. Não fraturou sequer um membro, não ficou tetra ou paraplégica… Mas sofreu um traumatismo craniano. E, por conta disso, perdeu o olfato e o paladar, para sempre. Entrou para a lista dos quase 25% da população brasileira que convivem com alguma deficiência. Embora nem mesmo haja unanimidade que esse tipo de impedimento sensorial possa ser considerado deficiência.

Faz nove meses que minha mãe faleceu em decorrência de um câncer, mas eu me recordo com frequência das situações cotidianas que ela vivenciava. Certo dia, quando eu caminhava com ela por um shopping, uma vendedora de perfumes nos abordou e esticou o braço em nossa direção. Em sua mão estavam dois pedaços de papel, ela borrifou o líquido perfumado e disse: sintam que delícia! A simpatia dela me impediu de agir de outro modo. A vontade era dizer: ela não pode sentir. Mas o constrangimento me fez apenas agradecer e continuar caminhando. Minha mãe também agradeceu, esperou nos afastarmos, me entregou o papel cheiroso e apenas perguntou: é bom? Desde o acidente, ela perdeu o gosto de presentear qualquer pessoa com itens de perfumaria. Ou, se desejasse fazer isso, pedia que eu fosse comprar. Simplesmente porque, na percepção das vendedoras de perfumarias, todos os seres humanos podem sentir cheiro. E, se os clientes entram na loja, a primeira coisa que são constrangidos a fazer é explorar o olfato.

Num mundo tão carente de princípios básicos de humanidade, começar trabalhando a empatia ou a compaixão pode ser um primeiro passo para promover mudanças efetivas no modo de lidarmos com as diferenças.

Em outra ocasião, estávamos hospedadas em um hotel quando acordei na madrugada com um forte cheiro de gás. Era algo insuportável. Minha mãe dormia inabalável. A recepção do estabelecimento não informou os hóspedes do grave vazamento ocorrido, acreditando que o odor seria suficiente para fazer com que todos se dirigissem à portaria. Não fosse eu estar dividindo o quarto com ela, poderia ter sido vítima de asfixia.

Anosmia e ageusia são raros e socialmente invisíveis. Nem sempre entram para as estatísticas por haver controvérsia se seria deficiência sob a perspectiva médica, ainda que seja pela social. Diferentemente dos problemas auditivos, de visão ou de mobilidade, passam despercebidos pela maioria de nós. A perda, ainda que temporária, desses dois sentidos tão importantes (como olfato e paladar) ou da mobilidade de outrora, só passou a ganhar mais visibilidade recentemente, especialmente por conta dos sintomas recorrentes da Covid-19 ou da necessidade do distanciamento social. É triste, mas é a realidade.

O que nem todo mundo sabe, porque nunca vivenciou ou nunca se fez as perguntas que coloquei no início deste artigo, é que é possível ser mais empático com as situações alheias. É preciso e importante nos solidarizarmos com as vivências e as dores do outro. Num mundo tão carente de princípios básicos de humanidade, começar trabalhando a empatia ou a compaixão pode ser um primeiro passo para promover mudanças efetivas no modo de lidarmos com as diferenças.

Afinal, pessoas cegas compram roupa, sapato e tudo mais como você. Querem também ter direito à arte, à informação e à mobilidade. Pessoas surdas podem dançar, têm curiosidade em saber o que é música e desejam interagir com o mundo. Pessoas que não sentem cheiro também querem se sentir cheirosas, ainda que não possam perceber o próprio perfume que exalam. Pessoas que perderam o paladar ainda podem almejar frequentar um restaurante ou imaginar o gosto que um alimento pode ter. Seria ainda mais cruel querermos tirar também isso delas.

Todos que já vivenciaram o desprezo por sua condição ou o descaso com seus direitos entenderão perfeitamente o que eu estou tentando demonstrar. E se você ou alguém de sua família já ficou gripado – com o nariz bem congestionado – ou perdeu momentaneamente olfato ou paladar em decorrência do novo coronavírus, poderia imaginar por um instante o que deve ser passar por isso durante toda uma vida? Acho que este é um exercício que todos nós podemos e devemos fazer. A Covid-19 deixa um legado de muitas perdas, mas, se nos trouxer um pouco mais de humanidade, já será algum aprendizado.