Colunas

O chinelo velho e o pé torto

Apesar de não possuir a maior extensão territorial e tampouco ser o mais povoado, Minas Gerais é o estado brasileiro que ostenta a maior quantidade de municípios. São oitocentos e cinquenta e três. O número impressiona, mas na verdade podemos dividi-lo em: (a) meia dúzia de roças grandes; e (b) centenas e centenas de arraiais metidos a besta.

Essa dispersão do povo mineiro numa constelação de pequenos núcleos cria, para o transporte rodoviário de passageiros, um desafio. Isso porque, na maioria desses lugares, há uma demanda muito pequena por deslocamentos mais longos, que dificilmente sustentaria uma linha de transporte público direto, de um ponto a outro. A solução encontrada para esta difícil equação tem nome e sobrenome: cata-jeca.

Caracterizado por conforto, temperatura e ventilação ímpares, o cata-jeca é um ônibus que até vai do ponto A ao B, mas o faz através de um percurso sinuoso, parando – pelo caminho – em boa parte do alfabeto. Na verdade, olhando no mapa, o trajeto de um cata-jeca costuma ser tão tortuoso que não seria exagero compará-lo com a escrita de Deus.

Pois bem: foi há cerca de dez anos, numa noite fria de junho, que eu – e mais meia dúzia de jecas – encarangávamos na rodoviária de Diamantina à espera do “parador” que, tendo saído de Minas Novas, nos cataria por volta de 23h59. Com uma britânica margem de erro de meia hora, partiríamos em direção à Trantor de nosso império caipira, Belo Horizonte.

O trajeto de um cata-jeca costuma ser tão tortuoso que não seria exagero compará-lo com a escrita de Deus.

Partiríamos o motorista, o ônibus e eu, porque do destino dos demais passageiros nada sabia, sendo provável que muitos desembarcassem pelo caminho. Na verdade, como tinha o costume de entrar, prender a bolsa entre as pernas para não ser furtado e dormir, comumente só descobria na rodoviária de BH que a pessoa sentada ao lado já não mais estava lá.

Até por isso, a profusão de rostos que se acumularam naqueles anos de vida nômade se apagou da minha memória. Eram quase ausências. Chegavam, nada diziam, desapareciam. Mas havia exceções. Naquele dia, duas delas desembarcaram de um táxi, cinco minutos antes do horário marcado (e quase nunca cumprido).

Inicialmente, desceu uma mulher jovem, com ar apressado. A roupa discreta, elegante, diferia da profusão de moletons e calças jeans dos passageiros habituais. Parecia vir de um encontro formal. Em seguida, surgiu uma senhora, com traços semelhantes aos da primeira. Nos trajes, ela mantinha sintonia com a companheira de viagem. O rosto, porém, externava calma. Calma e profunda tristeza.

Essas observações reconstruí na memória depois. Na hora, pouca importância tiveram. Estava mais preocupado com a chegada do ônibus que, por sorte, não tardou a surgir. Apressei-me para encontrar meu assento, fazer meu ritual de proteção contra os larápios, inclinar o encosto da maneira mais confortável possível, ajeitar-me para dormir. Foi aí que as personagens que vira pouco antes se dirigiram exatamente aos bancos à minha frente para se sentarem.

Logo em seguida, o veículo se colocou a caminho. As mulheres estavam em silêncio e continuavam ignoradas. Na verdade, aproveitando a noite clara, eu lentamente adormecia, contemplando pela janela o casario de Diamantina raleando pouco a pouco, enquanto a linda paisagem do sertão mineiro se fazia protagonista de meu olhar.

Foi quando, me trazendo de volta para o corpo, a mulher mais jovem quebrou o silêncio, dizendo, de chofre:

“Desembucha, mãe! Não aguento mais essa cara de velório. Para você, eu tô errada, né?”

Não pude ver o rosto da senhora. Só escutei um longo suspiro, antes que a resposta surgisse…

“Minha filha, quem sou eu para julgar suas decisões. É seu direito seguir o caminho que considera mais adequado. Mas não posso evitar as emoções que surgem, naturalmente, quando você decide. Há vezes em que me alegro. Há vezes em que entristeço.”

“O que a senhora queria?”, disse a jovem, ríspida. “Que eu continuasse uma relação com alguém sem perspectiva? Não é você que sempre falou para eu seguir meus sonhos, meus ideais? Como ficar presa a uma âncora? Você é muito contraditória!”

Um braço atravessou o vão entre os dois bancos e vi que a mãe esboçou um carinho na filha, num gesto conciliador. Em seguida, disse:

“Meu bem, não confunda sua vida pública e seu mundo privado. Eu tenho muito orgulho de seu trabalho e das causas que defende. Mas, em certas coisas, você repete os mesmos erros.”

“Sim, eu sempre estou errada.”

“Eu não disse isso. Disse apenas que você repete certos erros. Quantas vezes te vi entusiasmada com alguém, cantando perfeições, para em seguida ir para o extremo oposto? Não é em namoro só não. É em tudo.”

“Pois é. Agora o fato de eu querer o certo, o melhor, virou defeito.”

A resposta da mãe veio com inesperada firmeza:

“Não se faça de boba! A mim pouco importam essas pessoas a quem você dispensa. Importa a sua contínua imaturidade. Você critica essas histórias infantis de princesas, mas age da mesma forma. É uma Cinderela esperando sapatos de cristal. Essa gente subserviente que te cerca não tem coragem de dizer, mas eu digo. Você tem qualidades maravilhosas, mas, nos relacionamentos íntimos, é explosiva, impaciente, controladora. Não sei se existem sapatos de cristal por ai, mas, se existirem, no seu pé eles não cabem. No seu pé torto, o que encaixa é um chinelo velho. Então, a escolha é sua: ou assume as próprias imperfeições e compreende a bênção que certos chinelos velhos são, no trabalho, nas amizades, nos relacionamentos, na família… ou continua por aí, fingindo buscar miragens, de pés descalços. Só não reclame quando eles começarem a sangrar. E não diga que eu não avisei.”

No momento em que a mãe terminou, fez-se silêncio profundo, cortado somente pelos roncos do motor do ônibus e de um passageiro ou outro, já adormecido. Minutos depois, a filha começou a chorar, baixinho, abraçando-se à mãe. Com a quietação repentina, eu também dormi.

Quando acordei, na rodoviária de Curvelo, elas já haviam partido. Não sei quem eram aquelas mulheres. Tampouco posso dar notícia dos amores que elas costumam “calçar”. Nada tenho a ver com isso. Mas aquela curta conversa – que tentei reproduzir da melhor forma – ficou em minha memória. Vez por outra, um acontecimento me faz relembrá-la.

A última vez foi há alguns dias, vendo a história de um herói de tempos atrás, mas também autor de certas iniquidades hoje contestadas, à luz de renovadas concepções sobre humanidade e civilização. Corre o mesmo risco de outros, cujas estátuas foram recentemente apeadas de seus pedestais, acabando na beira da estrada, num rio ou na sarjeta.

Independentemente dos debates sobre acertos e erros dos humanos do passado, sobre a justiça de julgá-los com base nas ideias contemporâneas, disso parece emanar uma lição. O fato de claramente acertarmos numa dimensão decisiva da vida presente não nos exime da responsabilidade de acertarmos nas demais. Não podem servir de desculpa para a autocomplacência.

Reconhecer-se como um pé torto, cheio de calos e joanetes, comumente perfumado pelo aroma inconfundível da gorgonzola, é libertador

“Conhece-te a ti mesmo”, estava escrito na porta do Oráculo de Delfos. Para responder a esse chamamento, não podemos utilizar como cortina as nossas causas, os nossos ideais. É uma vergonha fazê-los de escudo, já que eles nos parecem verdades óbvias. O desafio nos instiga a identificar as incompletudes que precisamos trabalhar. A olhar o espelho da alma sem máscaras, sem subterfúgios. Só assim conseguiremos quebrar o casulo/fantasia de Cinderelas e Cinderelos em que costumamos nos esconder.

Reconhecer-se como um pé torto, cheio de calos e joanetes, comumente perfumado pelo aroma inconfundível da gorgonzola, é libertador. Passamos a viver a tolerância construtiva. Lembramo-nos até de Baudelaire, que num de seus poemas dizia que o amor se aninha nos defeitos da pessoa amada. Como um pé torto se aninha num chinelo velho.

Virou lugar-comum da neurastenia repetir a surrada frase de Sartre: “o inferno são os outros”. Num mundo com tantas iniquidades, pode até ser. Mas pode ser também que, no encontro com os outros, espelhemos neles o inferno que ainda somos nós.

De meu lado, prefiro Vinícius de Moraes. Mesmo advertindo sobre os desencontros, ele cantou a vida como “a arte do encontro”. Valorizarmo-nos é essencial. No entanto, é preciso também assumir o jeca que há em nós e deixarmo-nos catar por outros jecas. O jeca que há em mim saúda o jeca que há em você. Só no encontro, chegaremos a algum lugar.