Colunas

Os jornais e o operariado: a greve de agosto de 1912

Homens, mulheres e crianças tinham jornadas de 10 a 12 horas diárias (Foto: Projeto As Minas Gerais)

Uma das formas de mensurar o grau de urbanidade e cultura cívica de uma determinada comunidade se dá pela capacidade de comunicação entre as pessoas e o seu acesso a informação. Há mais de um século, no início dos novecentos, Juiz de Fora gozava desse status com uma ativa opinião pública expressa em periódicos de grande circulação na cidade como o Diário Mercantil, o Jornal do Commércio e O Pharol. Sim, O Pharol com ph, outrora veículo de imprensa de uma distinta parcela letrada da cidade, volta agora a iluminar a opinião pública juiz-forana, sob novas configurações, perfis e roupagem digital, com o compromisso de levar a você leitor informação e conhecimento de qualidade.

 Juiz de Fora respirava então ares de uma urbe industrial, cuja alcunha de Manchester Mineira não significava presunção alguma, de fato se colocava entre as cidades mais industrializadas do país. Os jornais chegavam diariamente às mãos do leitor com ampla cobertura dos principais acontecimentos do cotidiano; não se furtavam, logicamente, a noticiar a conjuntura política, os problemas sociais e econômicos de âmbito nacional, bem como a cobertura internacional dos principais acontecimentos do mundo. Como todo jornal da época, os arranjos e disputas políticas, os problemas referentes à infraestrutura do centro da cidade, de bairros e das vilas operárias, as ocorrências policiais, a mendicância e a vagabundagem, o aumento da criminalidade, a delinquência juvenil, o trabalho e a educação do menor, os serviços urbanos voltados à população, o atendimento às demandas do comércio e da indústria, as discussões médicas e sanitárias em torno da saúde pública, ditavam o tom das reportagens, opiniões, crônicas, colunas e editorias.

Pois bem, Juiz de Fora, aos moldes de uma cidade industrial, era composta de um numeroso e diversificado operariado entre sua população, dos mais variados ramos de atividade: têxteis, sapateiros, marceneiros, pedreiros, carroceiros, curtidores, motorneiros, empregados em diversas fábricas e oficinas. Número esse, adensado por expressiva presença de mulheres e crianças, concentradas majoritariamente nas indústrias têxteis, entre as quais, se destacava a fábrica de tecidos Bernardo Mascarenhas.

Sem a intenção de querer testar sua paciência, caro leitor, mas sim de aguçar a sua curiosidade, destaco aqui breves passagens da ampla cobertura feita pelo jornal O Pharol e o Diário Mercantil quando a cidade assistiu pela primeira vez uma greve geral de operários. Com a pretensão de transportá-los ao ano de 1912, através das linhas desta modesta coluna, faremos uma breve viagem no tempo, rumo a belle-époque juiz-forana – lembrando do célebre livro da professora Maraliz Christo – num momento de grande agitação vivida na Manchester Mineira. Destarte, peço licença para remeter-me aos meus estudos e pesquisas sobre história social do trabalho, mais precisamente, a minha dissertação de mestrado sobre o movimento operário em Juiz de Fora, onde inclusive estão devidamente referenciados todos os créditos das fontes históricas pesquisadas e aqui mencionadas.

A cidade mantinha rotineira reprodução de sua economia urbana, exigindo de seus trabalhadores, homens, mulheres e crianças jornadas extenuantes de 10 a 12 horas de trabalho diário

A cidade mantinha então a rotineira reprodução de sua economia urbana, com fábricas, oficinas e estabelecimentos comerciais exigindo de seus trabalhadores, homens, mulheres e crianças jornadas extenuantes de 10 a 12 horas de trabalho diário, salvo o sagrado domingo de descanso e oração. Eis que, no dia 15 de agosto daquele ano, chega à sede da Associação Irmãos Artistas um telegrama informando sobre mudanças na jornada de trabalho em Belo Horizonte.

No dia seguinte, cerca de 300 operários entre tecelões, pedreiros e carpinteiros paralisaram suas atividades contando ainda com o apoio dos sapateiros e de motorneiros da Companhia Mineira de Eletricidade. A comissão de greve, representada na ocasião por três operários — André Bechlufft, Antônio Nataroberto e José Bilet —, enviara uma carta no dia 16 de agosto ao presidente da Câmara Municipal, Oscar Vidal Ferreira Lage, solicitando seu apoio na regulamentação das oito horas de trabalho. A carta enfatizava também a importância do proletariado para o crescimento do país e a simpatia dispensada à classe por parte de vários setores da sociedade. Por fim, concluía com um alerta às autoridades, afirmando que, na cidade, os operários já estavam “abandonando o trabalho”.

O Pharol e a greve operária

Os operários não se equivocaram em suas previsões, rapidamente a paralisação contava com a adesão de pelo menos 500 trabalhadores. Isso é o que noticiava a edição de 17 de agosto do Pharol em reportagem intitulada “Greve Operária”. O periódico se posicionava a favor dos interesses das classes operárias, sensibilizado com a atitude dos trabalhadores em paralisar as suas atividades na defesa de seus direitos, contanto que o movimento zelasse também pela “manutenção da ordem, das leis e da estabilidade do regime”. Reconhecia a legitimidade da pauta de reivindicações: redução da jornada de trabalho, partilha justa nos salários e regulamentação do trabalho dos menores de 14 anos.

Segundo o jornal, o apelo aos dirigentes do município por parte dos grevistas significava um importante meio de ação para a conquista de suas demandas. Não por acaso a imprensa respaldava essa iniciativa. O próprio operariado buscou a mediação do poder público municipal, através da formação de uma comissão de greve que enviara ao presidente da Câmara Municipal um requerimento com suas reivindicações. Esperava-se assim a intermediação do poder público junto aos patrões; isso implicava certa postura transigente do próprio operariado, sensibilizando a opinião pública e a imprensa.

De posse da reivindicação dos trabalhadores, Oscar Vidal resolveu então convocar outra comissão para deliberar sobre o assunto, composta por representantes dos industriais interessados em defender invariavelmente os seus interesses. Outrossim, a resposta aos trabalhadores foi inflexível: não concederam a jornada de oito horas, além de não reconhecerem qualquer competência do poder público municipal para legislar sobre a ordem do trabalho. Para os industriais, os operários descontentes deviam se dirigir ao “poder competente”, ou seja, ao governo federal, pedindo a decretação de uma lei que determinasse as oito horas de trabalho em todo o Brasil. A comissão deliberou ainda que os operários descontentes deveriam se entender individualmente com cada um dos respectivos patrões, “pois só no contato do patrão com o operário, e nunca entre o patrão e classe, repousava a ordem industrial”.

Não houve ao longo dos 15 dias de greve, que acabaria sem conquistas efetivas, qualquer postura agressiva dos jornais à causa operária. É possível essa inferência dada à repercussão das palavras proferidas por uma das lideranças do movimento, Donato Donatti, vindo de Belo Horizonte para o comando de greve e presidente da Federação do Trabalho do Estado de Minas Gerais. Por ocasião de uma reunião realizada no dia 19 de agosto no Largo do Riachuelo, o Diário Mercantil em matéria intitulada “A redução das horas de trabalho”, ressaltou a conduta de Donatti ao incitar seus companheiros a “agradecerem aos jornais locais o apoio que lhes têm prestado durante o movimento”.

‘É preciso agradecer aos jornais locais o apoio que lhes têm prestado durante o movimento’ – Donato Donatti

O artigo continuava a relatar os detalhes daquele dia com destaque à relação amistosa entre a imprensa e a comissão de greve: “À frente de uma multidão de mais de três mil operários que parou em nossa redação, falou brilhantemente Donato Donatti, exprimindo o agradecimento da classe pela atitude desta folha em relação à greve”. Da parte do jornal, a recíproca: “Respondeu, em vibrante discurso, o nosso prezado redator-chefe Pinto de Moura, cujas palavras foram calorosamente aplaudidas pela multidão de operários”. Momentos depois, “na redação de O Pharol falaram os senhores Anleto Ciampi e Donato Donatti, respondendo o nosso colega Albino Esteves”.

‘A força policial contra o povo’

Os sucessos do movimento paredista entre os operários e a disposição da imprensa em reconhecer os méritos de suas reivindicações, não encontrou ressonância entre os patrões, nem entre as forças policias da cidade. Um conflito envolvendo populares e a força policial, por volta das 21h do dia 21 de agosto, logo após uma passeata no Parque Halfeld, resultou na morte do marceneiro Juvenal Guimarães, empregado da Companhia Singer, atingido por um tiro no crânio, e de um ferimento na perna do guarda-armazém da ferrovia Central do Brasil, João Batista Ferreira Bretas.

A imprensa local condenou o fato e o classificou como “ato de selvageria praticado pela força policial em pleno coração da cidade”, personagem da mais “grotesca e horrível” cena de violência jamais presenciada pela população juiz-forana, vítima da “selvageria de uma soldadesca despreparada e irresponsável”. O próprio título do artigo do Diário Mercantil intitulado “A força policial contra o povo”, já ditava o tom da censura ao episódio, não só por parte da imprensa, mas de grande parcela da população à violência perpetrada pela polícia ante a natureza pacífica do movimento.

O reforço do policiamento e a violência desencadeada contra a greve sugerem uma predisposição da polícia com os interesses dos patrões e a conivência do poder público com os abusos. A ação policial era expressa na proteção junto às fábricas, na dispersão de trabalhadores reunidos em meetings e passeatas, ou organizados em parede para impedir a entrada de “fura-greves” no trabalho. As críticas à força policial, acusada de “fuzilar populares inocentes em pleno coração da urbs”, foram intensas. Inclusive, porque era de costume pessoas se reunirem frequentemente na praça para palestrar em público.

A desordem, tão temida pelos homens de imprensa, foi instituída justamente por aqueles que deveriam assegurá-la, mas que “desvairadamente” resolveram “disseminar o horror”. Logo no momento em que “por ali transitavam inúmeras famílias, crianças e cavalheiros inermes” e que se viram “perseguidos por soldados armados de carabina, investindo numa fúria canibalesca contra os transeuntes, espancando e matando como se estivessem numa horda de desordeiros e transformando nossa principal via pública numa verdadeira praça de guerra”, denunciava o Diário Mercantil.

Os operários e o movimento grevista foram isentados pela imprensa de maiores responsabilidades no episódio. Os jornais faziam questão de frisar que noticiavam o desenrolar da greve, sem recriminações ao movimento, justamente por seu caráter pacífico e por ter se mantido em grande parte na órbita da ordem.

É possível perceber nestas breves linhas a dimensão da força operária na cidade e de seu potencial industrializante; não por acaso, lembrada aqui como a Manchester Mineira. A greve de 1912 em Juiz de Fora escreve um importante episódio da história do movimento operário brasileiro e os jornais não se furtaram em emitir seus posicionamentos, em situar os problemas relacionados à questão social e de abrir espaço para expor as contradições de classe. Não se trata aqui de posicionar a imprensa juiz-forana como progressista e imbuída de um caráter sensível às questões sociais, imagino que essa não era a tônica da pauta da maioria das matérias, pelo contrário.

Se por um lado o conservadorismo liberal e a cultura política oligárquica da Primeira República colocavam obstáculos a extensão de direitos e o exercício da cidadania pela maioria dos brasileiros, por outro, não se deve menosprezar o papel crucial dos movimentos sociais e sua trajetória de lutas na conquista de direitos. Por décadas sujeitos históricos se empenharam na construção de um Estado com mais justiça social cujas bases encontram-se hoje cada vez mais fragilizadas, frente às investidas do afã neoliberal. Por fim, entre os papeis desempenhados pela imprensa, um deles é o posicionamento crítico e reflexivo de modo a problematizar as circunstâncias que afetam a vida das pessoas. Creio ser esse um dos intuitos dos envolvidos nessa nova empreitada que se anuncia. Que O Pharol traga novamente luz à imprensa escrita de Juiz de Fora.