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Cantinho do pensamento

Fez malcriação, bobagem, disse coisa feia, brigou com o coleguinha? Cantinho do pensamento. É lá que nascem a pausa, o silêncio e a possibilidade de pensar no que houve de errado e que leva a pessoa a ser deslocada do contexto em que gostaria de estar.

A pedagogia (escolar, familiar, penal, militar, religiosa) tem esse método secularmente eficaz pra cuidar de delitos. E que faz pensar quando bem aplicado. Tá lá no Foucault: vigiar e punir. Difícil de ler, né? Bora explicar.

Na sociedade da soberania, infringir a lei era ofender o rei. Por isso o espetáculo em praça pública era importante: o rei mostrava que estava de olho. Esticar as pessoas pelos braços e pelas pernas até arrebentar (primeira cena do livro, Foucault sabia fazer um incipit!), cortar cabeças na gilhotina, amarrar marginalzinho no poste e espancar até morrer, tudo faz parte de um tempo antigo, de justiça em nome de uma força superior.

Quando chega a sociedade da disciplina, quem fica de olho é o sistema. Às vezes no olho por olho e dente por dente (matou com facada, morre de facada), quem mandava era a lei. Bastava que cada um ficasse no seu quadrado e tudo seguia na mais perfeita ordem: o estudante estuda, o trabalhador trabalha, a imprensa informa e a justiça julga.

Hoje, seguindo a tríade, vivemos a sociedade do controle e aí já tem o dedo do Deleuze. Quem fica de olho no infrator é o próprio infrator, meio que homem lobo do homem. Sabe aquele aviso de que você está sendo filmado? Você nem precisa estar. O mais legal: você manda as fotos pra todo mundo te vigiar, quebrando o galho do vigia. E quem pune? Você mesmo. Sustentabilidade pura!

É um negócio meio sem dono, em que ninguém é de ninguém, todo mundo saiu do lugar e na hora de tomar conta dos outros pode, mas ser criticado não vale. Pense nos quatro poderes.

O executivo executa. Deveria ser diferente da sociedade da soberania, mas as estatísticas da Covid-19 no Brasil, o cashback da vacina, a omissão no combate à fome e ao desmatamento mostram que o tempo não segue de forma linear como queria James Frazer (ou estamos bem longe de uma sociedade evoluída). Entre as várias execuções, aplaudiu a de um assassino em um país em que racismo e pena de morte convivem na mesma categoria: aqui não tem!

Sabe aquele aviso de que você está sendo filmado? Você nem precisa estar. O mais legal: você manda as fotos pra todo mundo te vigiar, quebrando o galho do vigia.

Se JC estivesse aí pra trazer o Lázaro de volta, ele seria julgado e, provavelmente, condenado (existem advogados muito bons, escute o julgamento do Doca no segundo episódio de Praia dos Ossos para perceber como a retórica funciona). Mas a sentença foi cumprida antes de ser dada, parece livro do Phillip K. Dick que virou filme do Spielberg: a mentalização antecipa o crime e o sujeito é preso antes de cometê-lo em Minority Report. (Ainda precisamos saber onde está o Amarildo e quem matou Marielle.)

Esse tipo de aplauso é legitimado pela mídia, o quarto poder, quando a revista Veja estampa na capa que os suspeitos do assassinato da Isabella Nardoni eram culpados, quando nem o juiz sabia ainda. Caramba, que grande imprensa a nossa! Se a ouvíssemos mais poderíamos ter… Já falamos do executivo, né?

No legislativo o pessoal cria as leis. E dura lex sed lex. No Brasil tem um tal de “não concordo com essa lei”, ou mais ainda: “não gosto”. E o sujeito simplesmente não segue, olha que país livre! E assim os vereadores e deputados trabalham pra que opções cheguem à sociedade, não diretrizes pro bem comum. Nem faz tanta diferença assim, pois a Lei Menino Bernardo não valeu pro menino Henry Borel, talvez porque ele não soubesse ler ainda.

O judiciário… ah, este sim, tem história de reputação ilibada. Lá em 2013 um monte de gente foi pra rua cantar o Hino Nacional e falar que não eram apenas vinte centavos. (Caramba, a gasolina custava menos de três reais… Desculpe, foi um devaneio.) Também gritou-se muito contra a PEC 37, chamada de PEC da Impunidade, porque impedia que promotores e procuradores iniciassem seus próprios processos. A PEC foi derrotada na Câmara e a vida seguiu cheia de reviravoltas até este 2021, no qual estamos porque uma mesma pessoa pode acusar e julgar.

Pense no Sergio Moro (aquele ex-juiz, ex-salvador da pátria e eis que passeia com a conge em Washington ao invés de ficar no país do Bolsonaro que ele ajudou a eleger e que ainda não é ex, infelizmente). Mandou e desmandou em cima do Lula e depois foi considerado incompetente. Entre todas as perguntas, a que mais incomoda é: como devolver o tempo que um sujeito passou injustiçado na cadeia? E nas marchas de 2013 toda essa semente começou a germinar.

Opa, chegou notificação no celular! Vida de alguém a ser seguida, vigiada, punida em chats e trocas de certezas. Fluxo de informações sem consultas, punições desenfreadas, tudo liberado porque é assim que deve ser. Caiu na rede, é peixe. E cada cardume que nem dá tempo de desligar o mundo um pouco e refletir sobre ele.

Falar que falta justiça no país é um absurdo. Que falta informação é outro. Lei também não falta e nem gente pra criar ou aplicar as normas. Falta é cantinho do pensamento pra muita gente. Falta professor bravo pra muito aluno malandro. Falta mãe pra muito filho da puta.