Colunas

Enquanto estou viva

Quantas vezes é possível morrer? Parece uma pergunta simples, não é? Mas infelizmente é mais complexa do que parece. Nesta semana, tive a chance de participar de uma banca de defesa para a graduação de uma nova, e muito talentosa, jornalista. O tema, do qual eu tinha fugido enquanto pude, veio me encontrar. Confrontou, socou o estômago, entalou na garganta e me fez morrer mais uma vez. Desta vez, com Ágatha Félix.

A menina de 8 anos, assassinada por um disparo de um policial militar da Unidade de Polícia Pacificadora do Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio de Janeiro, que eu insistia em não conhecer melhor. Talvez porque ela já parecia tão intima para mim.

No dia 20 de setembro de 2019, quando vi pelos jornais o retrato de Ágatha, eu enxerguei minhas primas, minhas sobrinhas, a mim mesma. E rapidamente mudei de canal. Eu não queria morrer mais uma vez. Como aconteceu em 2014, quando uma viatura da Polícia Militar arrastou por 350 metros o corpo de Cláudia Silva Ferreira que, após ser baleada em um confronto policial, foi colocada em um porta-malas que se abriu, deixando o corpo preso ao carro por um pedaço de roupa.  Como acontece todos os dias ao abrir ao jornal, escolher uma série para assistir em um momento que deveria ser de prazer ou ao deslizar a tela do celular.

Morremos um pouco a cada vez que, ao olharmos no espelho da mídia, encontramos corpos como os nossos sendo violentados e assassinados.  Em 2020, o Atlas da Violência mostrou que os casos de homicídio de pretos e pardos aumentaram 11,5% de 2008 a 2018.  E não, a violência não cresceu de modo indiscriminado. A bala “não perdida” segue indo direto ao alvo. No mesmo período, a taxa de homicídios entre não negros apresentou queda de 12,9%.

Essas tantas mortes nos ajudam a compreender a gravidade do episódio de violência que presenciamos contra Matheus Ribeiro, acusado por um casal de jovens brancos e ricos, de furtar uma bicicleta no Leblon. Nossa organização social, nosso olhar sobre a população negra e pobre do país, garante que esse tipo de atitude seja tomado contra Matheus sem que os acusadores precisem pensar duas vezes. Afinal, eles inegavelmente se parecem mais com a versão que se convencionou estabelecer como vítima do que o jovem Matheus.

Não é difícil imaginar que os jovens negros — como eu, meus primos, meu filho — pensariam muitas vezes antes de questionar a um jovem branco a procedência da sua bicicleta. A chance de que transeuntes vissem com medo um casal de jovens negros incomodando o jovem indefeso em sua bicicleta e interferissem chamando ou polícia ou agindo de forma violenta seria enorme. Ao seu lado, garantindo sua segurança, o casal que acusou Matheus de furto conta com a sociedade. Conta com a presunção da inocência que nós não conhecemos. Se Matheus não roubou, então deve ter receptado produto roubado: essa é a acusação atual. Ele que prove sua inocência. A priori, ele é culpado.

Sim, é possível morrer muitas vezes ao longo da vida. Quem manda matar Marielle e segue impune também é responsável pela morte da crença na justiça que há em cada um de nós.  Na mesma banca de graduação que deu início à divagação que motivou essa coluna, a querida Marina Lopes cita Conceição Evaristo, em seu poema “Certidão de Óbito”, cujo trecho resgato aqui: “A bala não erra o alvo, no escuro um corpo negro bambeia e dança. A certidão de óbito, os antigos sabem, veio lavrada desde os negreiros”.

Enquanto insistirmos em enterrar o racismo estrutural que nos assola, estaremos enterrando muitos de nós, várias vezes, em vida.