A vida dos outros

Cartas para Larissa: a amizade de Itamar Franco com uma menina de seis anos durante a presidência

Intervenção de Camila Matheus sobre fotos do acervo do Memorial da República Presidente Itamar Franco

A primeira carta de Larissa Mallmann Fernandes Almeida Brandão, postada numa agência dos Correios de Curitiba, no Paraná, alcançou Itamar Augusto Cautiero Franco no final de abril de 1993, na Praça dos Três Poderes, 3º andar, Palácio do Planalto. A remetente era uma menina de seis anos com preocupações ambientais e sociais, sendo o destinatário o 33º presidente do Brasil. Os dois desenvolveriam uma amizade pelos próximos 18 anos e dois meses, quando um telegrama do gabinete 5 do Senado Federal surpreendeu a consultora empresarial Larissa Mallmann. Era o senador Itamar Franco externando cumprimentos em tom de despedida.

O início da correspondência entre o ex-presidente e a estudante primária, bem como fotos e relatos de encontros entre os dois, integram o acervo do Memorial da República Presidente Itamar Franco, mantido pela Universidade Federal de Juiz de Fora. A outra parte dos relatos e das memórias está com Larissa Mallmann na ponte aérea Curitiba-Caxias do Sul, onde O Pharol a localizou para falar de saudade e de legado após dez anos da morte do seu mais ilustre amigo.

A ideia de escrever a primeira carta para o presidente do Brasil veio durante uma atividade escolar. “Era para escrever uma redação para alguém. O tema era aberto e podia ser para qualquer pessoa.” Filha de jornalista, Larissa havia acompanhado em casa o processo de impeachment de Fernando Collor de Mello e os primeiros passos do Governo Itamar Franco. “Meu avô me explicou o que estava acontecendo. Mesmo para uma criança era possível saber que as coisas não estavam bem.”

A figura de Itamar constantemente no noticiário e nas capas dos jornais acabou mexendo com os sentimentos da menina. “Não houve influência dos mais velhos em casa, nada disso. Foi algo autêntico. Eu me encantei com o Itamar.” Larissa lembra que, no discurso de posse, havia algo diferente, um sentimento bom. “Ele encarnava para mim ética, seriedade, ponderação. Para uma criancinha, era alguém amável, afável, educado. Achava ele inteligente. Isso tudo me marcou muito.”

Quando a professora propôs para a turma escrever para alguém de forte apreço, Larissa não teve dúvidas. Com lápis e uma folha em branco, pediu ao “querido presidente” que cuidasse das árvores e dos animais e não deixasse crianças, jovens e velhos “pedindo esmola na rua”. A cartinha é encerrada com o desenho de uma princesa com uma flor na mão e um sol sorrindo. Ao lado do desejo de boa sorte, um número de telefone.

O incentivo para enviar a cartinha veio de uma amiga da família. No início houve uma rejeição, mas a ideia ganhou força. A Presidência da República registrou apenas a resposta do presidente no dia 7 de maio de 1993 em texto assinado pela assessora especial Ruth Hargreaves. “Não tinha nem consciência de que a carta foi enviada. Mas aí veio a resposta. Ligaram para minha casa pela manhã, conversaram com minha mãe e depois ligaram para minha escola. Então, conversei pela primeira vez com o Itamar pelo telefone. Não me lembro do que ele disse.”

Das outras conversas e dos poucos encontros pessoais, Larissa se lembra. “Estive poucas vezes com o Itamar presencialmente. Sei que ele tinha tato para conversar com crianças. Até porque ele tinha suas filhas. Mas era delicado, com assuntos leves. O interessante é que sabia ouvir e entender as crianças.” Em Brasília, durante a presidência de Itamar, Larissa e sua mãe estiveram apenas uma vez. Foi uma viagem rápida, com visitas aos palácios do Planalto e Alvorada. “Lembro que havia crianças para me ambientar. Era legal esse cuidado.”

Com a saída de Itamar da presidência, a amizade e as correspondências continuaram. Na adolescência, Larissa ganhou uma nova oportunidade de se encontrar pessoalmente com o ilustre amigo quando, no início da gestão Itamar Franco à frente do Governo de Minas (1999-2002), a Associação Comercial do Paraná convidou o governador mineiro para falar sobre o risco de privatização de Furnas. “Estive com o Itamar e o (senador) Roberto Requião nessa ocasião. Participei de um almoço, mas era muita gente e acabou que conversamos brevemente.”

Enquanto cursava a faculdade de direito, Larissa conversou com Itamar algumas vezes, já com um nível de compreensão maior. “De tempos em tempos, de muito tempos em tempos, nos falávamos por telefone. Contava o que acontecia, falava da faculdade. Havia uma torcida por parte dele para que eu me desenvolvesse.” A menina que se tornou consultora empresarial retribuía o carinho. “Sempre torcia pelo Itamar como pessoa, para que seus objetivos fossem alcançados.”

Em 2011, um telegrama enviado pelo gabinete do então senador Itamar deixava claro para Larissa que o velho amigo estava quase partindo. “Recebi do Itamar um telegrama no ano do seu falecimento. Era um texto bem curto que deu para entender se tratar de uma despedida. Entendi que a doença estava muito avançada e que não nos falaríamos mais.” Internado no hospital Israelita Albert Einstein, onde tratava de leucemia, o ex-presidente morreu na manhã do dia 2 de julho de 2011, após sofrer um acidente vascular cerebral.

Para Larissa, o seu mais ilustre amigo foi alguém que ainda faz falta. “Um ser humano de inquestionável integridade, coerência, inteligência, ponderação, caráter. Tantas qualidades que, por ocasião, mostram como é importante estarem no nosso representante, de alguém em um cargo de liderança, de chefia, de comando.” É uma pena, segundo ela, seu legado ainda ter tão pouca visibilidade. “Pena que os brasileiros não tenham ainda a noção da profundidade dos rumos que o Itamar deu ao país”.

Sobre saudade, Larissa mostra-se serena. “Itamar é uma amizade que transcende. Tínhamos um ponto de identificação muito forte. Não me atrevo a falar em admiração mútua, mas eu o admirava muito. Que alegria quando quem a gente admira, por algum motivo, nos dá algum afeto e algum carinho.”

O Memorial da República Presidente Itamar Franco trabalha atualmente na catalogação do acervo. Muitas outras cartas estão entre os documentos arquivados. A proposta para o futuro é digitalizar todo o material para ampliar o acesso a esse importante período da história republicana do país.