Por 441 votos a favor e 38 contra, a Câmara dos Deputados autorizou o Senado a abrir o processo de impeachment contra o presidente Fernando Collor de Mello. Era o dia 29 de setembro de 1992. No dia seguinte, o processo chegou ao Senado, sendo eleita e instalada a Comissão Especial de Impeachment. Já era noite quando o parecer pela instauração do procedimento foi aprovado.
Os trâmites seguiram. O plenário do Senado, em regime de urgência, votou pela instauração do impeachment no dia seguinte. Como consequência, Fernando Collor recebeu o comunicado de que deveria se afastar temporariamente da Presidência enquanto durasse o julgamento. Terminaria naquele momento seu desastroso governo.
Em 2 de outubro de 1992, o vice-presidente Itamar Franco assumiu provisoriamente o governo e começou a escolher sua equipe ministerial. Somente em 29 de dezembro seria empossado de forma definitiva. Seu propósito, inimaginável até para os dias atuais, era montar um governo de coalizão com PT e PSDB. Chamou, então, Luiz Inácio Lula da Silva, que tinha sido o adversário de sua chapa nas eleições de 1989, para ajudá-lo.
“Nós não participamos do governo dele. Eu hoje considero um erro. Acho que deveríamos ter entrado para o Governo do Itamar (1992-1994)”, reconhece o ex-ministro da Casa Civil do Governo Lula, José Dirceu. Convidado por O Pharol para conversar sobre o legado do ex-presidente Itamar Franco após dez anos de sua morte, o ex-presidente nacional do PT revela conversas e encontros de três décadas.
José Dirceu considera o ex-presidente como um nacionalista progressista e, naquele momento de extrema fragilidade da República, seria importante integrar o governo. “Procurei o Itamar para deixar claro que nós não íamos impugnar o nome ou exigir que ele não assumisse. Havíamos lutado juntos pela redemocratização. Estava seguro de que o Itamar tomaria posse e governaria.”
Mas por que o PT não compôs o governo? Para o ex-ministro petista, foi um erro de avaliação. “Deveríamos ter disputado (em 1994) dentro do Governo Itamar. Ele (o presidente) não tinha força política para usar o mandato para outra coisa. Além do mais, continua José Dirceu, “era um governo de transição, e o Itamar não queria privatização, queria um governo popular”.
As tentativas de coalizão com o PT
Ricardo Kotscho, que foi secretário de Imprensa e Divulgação nos dois primeiros anos do Governo Lula, em texto publicado em seu blog, lembra que acompanhou Lula na viagem a Brasília para conversar com Itamar. Segundo ele, pelo tom das conversas, “o PT, derrotado em 1989, nas primeiras eleições diretas para presidente da República, não iria participar do governo Itamar, já de olho nas eleições de 1994”.
“Lula até chegou a sugerir alguns nomes para um ministério suprapartidário — lembro-me de Adib Jatene, Walter Barelli e José Serra —, mas nenhum deles era do PT”, recorda Kotscho. Ele lembra que, ao ouvir o nome de Serra, o presidente reagiu com bom humor. “Muito bom nome… Só que esse aí quer ser presidente, vai querer o meu lugar, como já disse o Tancredo.” Tancredo Neves (que havia sido eleito presidente em eleição indireta em 1985, mas morreu antes de tomar posse) havia usado o mesmo argumento anos antes para não aceitar a indicação do tucano para o Ministério da Fazenda.
Ao fim das conversas, apenas Walter Barelli, então presidente do Dieese, ligado ao PT, mas não filiado, acabou fazendo parte da gestão Itamar. A petista com carteirinha que integrou a equipe ministerial do juiz-forano não teve vida fácil. Luiza Erundina, que havia encerrado sua gestão na Prefeitura de São Paulo (1989-1992), teve seus direitos políticos suspensos no partido. O fato marcou o início de sua ruptura com o PT.
Mesmo com a resistência por parte de setores do PT, as conversas com Lula seguiam. Kotscho conta que voltou a Brasília com o petista para levar ao presidente o projeto de Segurança Alimentar elaborado no Instituto Cidadania pela equipe de José Gomes da Silva, pai do ex-ministro José Graziano da Silva.
Como da primeira vez, Itamar topou adotar o projeto, que era um embrião do Fome Zero, desde que Lula indicasse alguém do seu partido para comandá-lo. “Lula indicou novamente um nome fora do PT, o do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, que não era filiado a partido algum, imediatamente aceito por Itamar.”
Kotscho faz questão de lembrar que o PSDB optou por compor com Itamar, colocando Fernando Henrique Cardoso na Fazenda, que acabou se elegendo sucessor do juiz-forano. A proximidade com os tucanos não interferiu na amizade com José Dirceu. Depois de passar pela embaixada em Portugal, e, posteriormente, pela Organização dos Estados Americanos (OEA) em Washington, o ex-presidente retornou para Minas já rompido com Fernando Henrique Cardoso.
“Itamar foi para Juiz de Fora e continuamos nossa relação. Quando ele vai para o Governo de Minas, ficamos ainda mais próximos”, conta José Dirceu, que entendia ser a via mineira o único caminho para o PT chegar à presidência da República. “Já havia expressado para a direção do PT e para o Lula que, para chegar ao (Palácio do) Planalto, deveríamos passar primeiro pelo Palácio da Liberdade. Então comecei as conversas com o Itamar.”
José Dirceu recorda que o determinante apoio veio, mas não foi fácil. Na ocasião, na qualidade de presidente nacional do PT, contou a seu favor o fato de Itamar fazer um ferrenho enfrentamento a Fernando Henrique a partir de Minas. “Itamar era difícil para se relacionar, tinha atitudes inesperadas. Prezava muito por sua liderança. Era preciso saber conduzir. Mas, sem Minas, talvez não ganhássemos as eleições (de 2002). Foi fundamental.”
Com Lula presidente e Itamar fora do Palácio da Liberdade, José Dirceu conta que iniciou uma articulação para o ex-presidente assumir a embaixada do Brasil na Itália. “Depois que ele saiu do Governo de Minas, insisti muito para ele ser embaixador na Itália. Já o havia visitado em Portugal e fui recebido como ministro por ele na Itália.” Itamar ficou em Roma até fevereiro de 2005, quando retornou “para casa”.
Indicação de Cármen Lúcia para o STF
José Dirceu lembra que, em 2006, quando a mineira Cármen Lúcia foi indicada para ocupar uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF), o apoio de Itamar foi determinante. “Cármen Lúcia era muita amiga do Itamar e ele fez muito por ela, para ela ser indicada.” Segundo ele, ainda que estivesse “nas entrelinhas” que a indicação compunha uma espécie de acordo com o ex-presidente, houve uma peleja com o pessoal do PT de Minas, que tinha sugerido outro nome.
Nas eleições de 2006, Itamar declarou apoio a Geraldo Alckmin (PSDB), que acabou sendo derrotado por Lula em sua reeleição. Mesmo rompido com o PT, sua relação de amizade com José Dirceu permaneceu. “Continuei visitando o Itamar em Juiz de Fora.” Em entrevista à revista Piauí em 2007, Itamar tratou o ex-ministro da Casa Civil como “a última inteligência do governo Lula” e relatou conversas esporádicas por telefone.
As conversas entre Itamar e José Dirceu seguiram até o retorno do ex-presidente ao Senado nas eleições de 2010. “Aí veio 2011 e o Itamar acaba morrendo. Ainda assim continuei conversando com pessoal do seu grupo. Acabou que nos tornamos amigos.” Como muitos daqueles que conviveram com Itamar, o ex-ministro da Casa Civil também defende que é necessário revisitar seu legado para a democracia do país. “Precisamos de uma grande biografia para fazer justiça ao Itamar.”
Para Ricardo Kostcho, seria bom que se desse o devido valor a Itamar na história recente do país, mas, adverte, que não se tente explicá-lo. “Assim era Itamar Franco, sempre meio imprevisível, instável, desconfiado de tudo e de todos, mas que acabou passando para a história como um presidente providencial, um homem probo, que nunca deixou de ser, antes de tudo, um político mineiro, embora tenha nascido num navio no litoral da Bahia.”
E termina: “Bobagem querer explicá-lo. Itamar era Itamar, primeiro e único”.