Conjuntura

Itamar foi sondado por Brizola e Covas antes de ser vice de Collor

(Intervenção de Camila Matheus sobre fotos de Leonel Brizola, Itamar Franco e Márcio Covas)

Itamar Franco seria candidato a vice nas eleições de 1989. Já naqueles idos, os mineiros tinham o segundo maior colégio eleitoral do país. Mas não era apenas isso. Três anos antes, Itamar havia concorrido ao Governo de Minas e, mesmo derrotado por Newton Cardoso, deixou a disputa com 2.570.439 votos. Soma-se ainda o fato de ele estar no último ano do seu segundo mandato como senador, com mensagem consolidada de político honesto.

“Aí é uma coisa que pouca gente sabe. Itamar foi sondado para ser candidato (com) Mário Covas (PSDB) a presidente República e para ser candidato (com) Leonel Brizola a Presidente da República. Optou por Fernando Collor de Mello (PRN). Se vocês me perguntarem por que, isso não sei responder.” A revelação é de Murílio Hingel, que esteve com Itamar durante toda a sua vida pública.

Brizola chegou a agendar conversas com Itamar (Foto: Arquivo/ALMG)

Ex-ministro, ex-secretário de estado e ex-secretário municipal de Educação nas gestões de Itamar Franco entre a década de 1960 e o início dos anos 2000, Hingel conversou com O Pharol sobre o legado do ex-presidente após uma década de sua morte. Para ele, a decisão por caminhar com o então governador de Alagoas foi opção pessoal de Itamar. “Foi a sua opção. E ele ganhou com Collor.”

Líder no Senado do Governo Itamar Franco (1992-1994), Pedro Simon conversou com O Pharol de sua casa na praia Rainha do Mar, em Xangri-lá, no litoral gaúcho. Segundo ele, o acaso teve enorme influência na vida do país. “O então senador Maurício Corrêa — que viria a ser, depois, presidente do Supremo Tribunal Federal — quis reunir em Brasília, na casa dele, Brizola e Itamar. Maurício Corrêa era mineiro e achava que, tendo Itamar Franco como vice na sua chapa, Brizola seria imbatível.”

Mas, devido a uma das muitas desventuras da trajetória política do país, o encontro, que chegou a ter data e hora marcadas, acabou não acontecendo. “Em função do desencontro e de outros acontecimentos, Itamar acabou sendo vice de Fernando Collor de Mello, e assumiu o Governo. Se Itamar fosse o vice de Brizola, provavelmente a chapa vitoriosa seria a deles.”

Na avaliação de Simon, Fernando Lyra, candidato a vice de Brizola, naquela ocasião, não tinha representatividade. “Se Itamar tivesse sido o vice-presidente, mudaria a situação (de Brizola) em Minas Gerais.” De fato, mesmo com desentendimentos durante a campanha, Itamar conseguiu ampliar o leque de apoio à chapa de Collor no estado, atraindo a vice-governadora Júnia Marise (MDB) e a ex-primeira dama Sarah Kubitschek.

Mário Covas acabou trocando de vice durante a campanha, mas sem Itamar, com quem manteve contato após eleito (Foto: Arquivo/PR)

O propósito do PSDB de ter um vice mineiro também não se concretiza. A preocupação com o eleitorado do estado levou a convenção do partido para Belo Horizonte, quando o senador por São Paulo Mário Covas se torna candidato a presidente da República. Para vice é indicado o ex-governador de Pernambuco e deputado federal Roberto Magalhães (PFL, ex-PDS e ex-Arena).

Para compor a chapa, Magalhães migra para o PTB, uma vez que o PFL teria Aureliano Chaves como candidato a presidente. A manobra, no entanto, não contornaria todos os obstáculos colocados para ex-governador pernambucano. Enquanto os tucanos de seu estado reclamam de seu passado conservador, o possível aliado, senador Marco Maciel, torce o nariz.

Os impasses acabam levando Mário Covas a substituir Magalhães na reta final da campanha, indicando para a vaga de vice o senador Almir Gabriel, do Pará. Na eleição seguinte, em 1994, os tucanos chegariam ao poder com Fernando Henrique e Marco Maciel como vice.

A Vice-Presidência

Murílio Hingel relata que, feita a opção por caminhar com Collor, Itamar veria sua chapa vitoriosa. “Mas percebeu ter entrado num vácuo desde o início, porque não foi consultado sobre a organização do Governo, não foi consultado para nada.” O vice-presidente não só passou à margem da equipe ministerial, bem como foi escanteado da elaboração do plano de estabilização econômica apresentado no dia seguinte à posse.

Embora com contratempos, o ex-ministro rememora a decência do amigo no exercício da função de vice-presidente. “Itamar era o vice-presidente da República e desde o início — e depois mais no final — já tem desentendimento com o presidente eleito Collor de Mello. Itamar despachava no anexo do Palácio do Planalto. Quando o presidente viajava, Itamar assumia a Presidência, mas nunca sentou na cadeira do presidente. Negava-se a fazê-lo; continuava despachando na Vice-Presidência da República.”

Foi durante uma das viagens de Collor que a primeira crítica pública do vice-presidente veio à tona. Exercendo interinamente a Presidência, Itamar contestou a privatização da Usiminas, afirmando que a operação prejudicaria a economia de Minas Gerais. Meses depois, defendeu a instituição de uma política salarial de proteção das classes menos favorecidas, recusada prontamente pela ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello.

Imprensa retratava transição de Collor para Itamar (Reprodução Tribuna da Imprensa)

A ruptura definitiva com o presidente viria em maio de 1992. Novamente sem consultar seu vice, Collor promove uma ampla reforma ministerial. Itamar desliga-se do PRN e, em carta a Collor, ataca o perfil conservador do novo ministério. No mesmo período, avançavam as denúncias de corrupção contra o Governo. Na mesma proporção, o vice-presidente acentuava publicamente suas diferenças em relação ao presidente.

Hingel recorda que, naquele momento, o processo contra Collor (no Congresso) e a opinião pública apontavam na direção do impeachment. “Sem dúvida nenhuma, em virtude dos escândalos, muito menores até dos que são hoje em tempos de pandemia e de Covid-19.” Ainda assim, segundo ele, na Vice-Presidência não se falava da questão. “O assunto era deixado de lado. Quer dizer: Itamar não moveu nenhum personagem, nenhuma atitude a favor do impeachment. Dignidade do cargo.”

Havia, sim, certa expectativa, mas sem interferências ou manobras para que o episódio ocorresse. “Até o dia em que Itamar reuniu a sua pequena equipe, não éramos mais do que seis pessoas, e disse: queria comunicar a vocês que agora não há mais alternativa, o presidente vai ser impedido.” Foi quando, em 1992, o presidente lançou mão da chamada Operação Uruguai para justificar seus exorbitantes gastos pessoais. “Aí, disse Itamar: nós vamos ter que assumir, preparem-se para o que vai vir.”

Na iminência de assumir a Presidência, o próprio Itamar iniciou um processo de costura no campo político, procurando lideranças no Senado e na Câmara dispostas a compor um governo de reconstrução nacional. “O Governo de Itamar não foi um governo político, desse ou daquele partido. Não houve ‘Centrão’. Não tinha necessidade porque estavam no Senado líderes como Pedro Simon”, explica Hingel.

Pedro Simon conta que não foi fácil. “O Itamar recebeu a economia e a política desarrumadas, com partidos de oposição, como o PT, se colocando em linha eleitoreira. Mas ele teve coragem de bancar a mudança na política econômica. Isso demandou tempo, coragem política, firmeza e o estabelecimento, de maneira fantástica, de um diálogo de respeito mútuo entre o Executivo e o Congresso Nacional.”

Ao falarem das dificuldades iniciais do incipiente Governo, tanto Simon quanto Hingel ressaltam o fato de que, embora o processo de impeachment tenha avançado de forma irreversível, Collor renunciou à Presidência da República. “Ele renunciou e não foi impedido. Renunciou antes do impeachment. Muitas vezes tem sido esquecido. Mas isso facilitou a sucessão de Itamar porque não se podia discutir se o impeachment era da chapa ou não”, explica ex-ministro.

A dignidade do cargo

Murílio Hingel assumiu o Ministério da Educação quando Itamar estava na Presidência de forma provisória, em virtude do afastamento temporário de Fernando Collor decretado pela Câmara dos Deputados. O vice-presidente só seria empossado definitivamente após a renúncia em 29 de dezembro de 1992.

“Minha própria nomeação como ministro de Estado, o Itamar assinou vice-presidente da República no exercício da Presidência da República.” Ele só viria a usar o título depois da renúncia do titular e de sua posse. “Sim, isso era um presidente da República. Estava à altura do momento da situação e deixou um país com uma nova aura de esperança, de reconstrução do futuro, o que hoje está se perdendo por todas as características do momento atual.”

Hingel: não havia interferência no MEC (Foto Leonardo Costa)

Hingel lembra que nunca houve ingerência do presidente em seu ministério. Ele assumiu a pasta com a necessidade de cumprir as metas assumidas em 1990 com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) durante a Conferência Mundial sobre Educação para Todos. Não perdeu tempo, mergulhou na espinhosa relação da União com estados e municípios, mobilizando os diversos atores educacionais na elaboração de um Sistema Nacional de Educação.

Nascia assim o Plano Decenal de Educação, baseado em metas construídas por meio do diálogo entre todos os entes federativos. A obrigação de planejar os rumos da educação no país a cada dez anos se tornaria obrigatória em 1996, com a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Daí também nasceu o Plano Nacional de Educação (PNE).

Teve um dia que Hingel foi até o presidente para reclamar da desvinculação de receitas da educação. “Conto essa história porque vai mostrar para você quem é Itamar.” A medida provisória de implantação do Plano Real previa a desvinculação de 20% das receitas da União. “Então eu, pessoalmente, fui ao Itamar e disse: olha, eu não concordo com a desvinculação de 20% dos recursos da educação. Isso é prioridade nacional. O Itamar virou-se para mim e falou: se você não concorda, vá ao Congresso Nacional e defenda sua posição.”

O ministro foi aos parlamentares e acabou sendo duramente criticado. “Acusaram-me de querer derrubar o Plano Real no seu nascedouro.” Ele acabou não conseguindo segurar a desvinculação das receitas da educação, mas levou como recompensa uma mudança no texto de outra medida provisória. “Consegui que fosse alterado o dispositivo que dizia: os 20% da desvinculação serão destinados preferentemente à saúde e à educação.”

Não transigia nas questões éticas

Por telefone, Pedro Simon fala de saudade com a reportagem de O Pharol. “Vocês, então, são da minha querida Juiz de Fora. Que saudade do presidente Itamar. Como esses tempos difíceis me levam ao meu amigo Itamar.” O ex-senador, que neste ano completou 91 anos, ainda se surpreende com o passar do tempo. “Mas já faz dez anos que o Itamar nos deixou? Quanta saudade.”

Pedro Simon despediu-se da vida pública em 2014 (Foto: Geraldo Magela/Agência Senado)

Convidado a descrever do que sente saudade, ele não titubeia: “Da decência, da retidão”. Simon toma o caso do Henrique Hargreaves, ex-ministro da Casa Civil envolvido em suspeita de corrupção no caso do orçamento. “Vocês de Juiz de Fora sabem que o Hargreaves era da cozinha do Itamar. E o que ele faz: afasta o Hargreaves até ser concluída a investigação. Inocentado, ele é reconduzido à pasta cem dias depois. Essa lição nunca foi repetida por nenhum governo.”

Para Simon, a importância do Governo Itamar ainda será revista. “Estamos falando de um presidente que assumiu o mandato sem partido, sem apoio e sem povo. O eleitor havia votado no Collor. Quem colocou o Itamar lá foi o Congresso. Estávamos iniciando a era da redemocratização. Itamar construiu um Governo de coalizão inimaginável. Fez tudo isso sem uma vírgula de corrupção. Ninguém nunca recebeu nem um mil réis para aprovar coisa alguma.”

O fato de Itamar não transigir nas questões éticas, segundo Simon, gerou as bases para seu Governo e para o país que se tem hoje. “Saímos de um Brasil mergulhado na insegurança e no medo para um Brasil de economia estável e democracia consolidada. É uma pena que não se dê ao Itamar seu devido valor. É uma pena que não compreendam que, das difíceis e necessárias decisões tomadas no Governo Itamar, nasceram as bases para os governos de Fernando Henrique Cardoso, Lula da Silva e Dilma Rousseff.”