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O Rosebud de cada um

"Cidadão Kane" (Citizen Kane) estreou oficialmente no RKO Palace de Nova York em 1º de maio de 1941 (Foto: Reprodução)

“Cidadão Kane”, tido e havido como o melhor filme de todos os tempos, gira em torno de uma palavra, dita por Charles Foster Kane no leito de morte: Rosebud. A partir daí a ascensão, apogeu e queda (nos princípios) do magnata da imprensa ficam quase em segundo plano diante da investigação do que seria Rosebud. Segredo ao final revelado: um objeto, no caso um trenó, que simbolizava a infância e os tempos felizes, muito longe das conquistas pessoais e materiais.

Em “Rastros de Ódio”, este sim o melhor filme da história, o Rosebud é a cadeira de balanço do velho Mose (um idiota, do bem – na linhagem das cenas irônicas de Woody Allen que remetem aos idiotas da literatura russa e até ao filme de Kurosawa. Ou seja, do tempo em que os idiotas eram inofensivos, não se elegiam presidente, não eram ministros, não usavam redes sociais e camisas amarelas e nem negociavam vacinas durante a Peste). Mose está velho e exige uma cadeira de balanço para revelar o paradeiro do chefe comanche Scar/Cicatriz. Depois, refestelado em sua cadeira, drama ao redor resolvido, ele pergunta a uma senhora texana se está mesmo louco (por querer uma cadeira de balanço) e ela lhe diz, com enorme sabedoria: “Não. Você está apenas cansado”.

“Cidadão Kane” e “Rastros de Ódio” são os melhores filmes da história de gerações diferentes. O primeiro de quem pensava o cinema como arte pura, forma e conteúdo; o segundo de quem se acostumou a ver filmes em sessões triplas. Em ambos, porém, o objeto fílmico é como a pedra jogada no lago para formar ondas.

Com o tempo, percebemos todos, as duas gerações, que os filmes representam períodos políticos e sociais. É assim desde “Intolerância”, de Griffith, passando por “O Encouraçado Potemkin (de Eisenstein), o cinema vigiado pelo comunismo (por razões de Estado) e pelo capitalismo (por questões de mercado) e chegando ao Cinema Novo brasileiro, o mais explosivo movimento cultural que se tem notícia, principalmente por conta de Glauber Rocha.

E é inevitável que seja assim. “Central do Brasil”, de Walter Salles, é o filme da Era FHC (com o menino contando as notas de real, mais que suficientes para comer e vestir, mas também pela falsa meritocracia da professora que cobra para escrever cartas). “Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert, é o filme da Era Lula (com o ódio dos ricos e da classe média com o sucesso no vestibular e o uso da piscina pela filha da empregada). “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, é o filme da Era Temer, o usurpador golpista e “reformista”, com cara e trejeitos de vampiro, que acreditava ser necessário colocar as “histéricas tradições” em ordem – no caso a CLT e os direitos trabalhistas e sindicais.

O Rosebud da Era Bolsonaro é a faca de Adélio Bispo. E isso diz muito desses tempos sombrios. Não é um objeto de infância, não é um filme. É a lâmina de pessoas eternamente e incuravelmente doentes, que vivem em transe, como se contassem com a “força e a harmonia universal dos infernos”.

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Para não dizer que não falei de flores, que é a parte que me cabe neste latifúndio: No domingo, pelo Campeonato Mineiro da Segunda Divisão, o Tupi perdeu em casa para o Serranense (1 a 3). Pesou muito a expulsão do goleiro Victor Hugo, no final do primeiro tempo, mas preocupou, muito.

No sábado, pelo mesmo torneio, o Tupynambás também perdeu, em Betim (0 a 1).