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O “distritão”, as minorias e a democracia

Congresso deve pautar a nova reforma política em agosto (Foto: Gustavo Leighton/Unsplash)

Ao longo das últimas semanas, o Congresso Nacional tem avançado nos debates em torno de propostas voltadas para reformar o sistema eleitoral. Uma delas, em especial, que diz respeito ao chamado “distritão”, está produzindo maior repercussão, sobretudo pelos impactos estruturais que a sua adoção representaria na política brasileira. Se aprovado, o “distritão” substituiria o atual sistema para a eleição dos cargos legislativos escolhidos por voto proporcional – deputados e vereadores – e colocaria em seu lugar um modelo majoritário, no qual seriam eleitos os candidatos mais votados, desconsiderando-se a importância dos partidos no cálculo final para a definição dos vitoriosos.

Várias têm sido as críticas realizadas ao “distritão”. O Pharol publicou recentemente uma reportagem, na qual os jornalistas Ricardo Miranda e Davi Carlos Acácio entrevistaram os cientistas políticos Martha Mendes e Raul Magalhães que chamaram muito bem a atenção para muitos dos retrocessos que a aprovação deste modelo traria para o sistema político brasileiro. Entre eles, merecem destaque o fortalecimento do personalismo e do individualismo, as vantagens que candidatos com mais recursos e mais conhecidos do grande público teriam na disputa eleitoral, o descarte total dos votos dos candidatos perdedores, além, é claro, o enfraquecimento dos partidos políticos.

Na minha avaliação, um dos aspectos mais problemáticos do chamado “distritão”, às vezes mencionado, mas que não tem sido explorado com a centralidade que merece nas diferentes análises sobre o tema, diz respeito ao quanto este modelo coloca em risco as minorias políticas. O sistema do “distritão”, por estar ancorado na ideia de que os mais votados é que devem “levar tudo”, desconsidera por completo a noção de que em uma democracia não importam apenas as maiorias de ocasião, mas as minorias políticas também precisam ter voz e serem representadas no poder Legislativo.

Suponhamos, por exemplo, uma eleição para a Câmara Municipal de Juiz de Fora, na qual os 19 candidatos mais bem votados pertencessem, todos eles, apenas ao partido X. Pergunto ao leitor: como ficariam as representações dos partidos Y, Z e W? O partido X seria capaz de representar todos os eleitores de Juiz de Fora, mesmo aqueles que votaram nos candidatos das outras legendas? Indo mais além na provocação: suponhamos que todos os vitoriosos do partido X tivessem concepções políticas machistas, homofóbicas e racistas. Quem faria uma contraposição às suas agendas na Câmara Municipal?

O sistema proporcional atualmente em vigência busca garantir precisamente que, ainda que sejam minorias em um parlamento, os eleitores dos partidos Y, Z e W, desde que atingindo o patamar do chamado “quociente eleitoral”, terão suas vozes asseguradas no Legislativo com a eleição de um ou mais representantes. A ideia subjacente ao sistema proporcional, portanto, é de que, em uma democracia, as maiorias devem ter maior poder, mas sem que isso signifique o silenciamento, por completo, das minorias.

A ideia subjacente ao sistema proporcional, portanto, é de que, em uma democracia, as maiorias devem ter maior poder, mas sem que isso signifique o silenciamento, por completo, das minorias.

Quando a democracia moderna surgiu no século XIX, no rescaldo das revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII, o intuito era justamente o de se romper com o sistema político anterior no qual pequenas minorias governavam as grandes maiorias. Os séculos XIX e XX testemunharam a expansão em diferentes países daquilo que T. S. Marshall, em Cidadania, classe social e status (1963) chamou de “direitos políticos”, mediante a inclusão de setores que antes permaneciam excluídos da política como os pobres, os analfabetos e as mulheres. Gradativamente, as maiorias começaram a ter não apenas o direito de votar, mas também de serem votadas.

Não obstante muitas críticas demofóbicas e reacionárias terem sido realizadas a esta inclusão, ela foi se afirmando ao longo do tempo, baseada na ideia de que as maiorias deveriam ser a força propulsora dos regimes democráticos. Porém, ainda no século XIX, alguns autores já demonstravam algumas preocupações relevantes sobre os riscos que um sistema político que levasse em conta apenas as maiorias poderia trazer para as minorias políticas. Exemplar nesse sentido é a formulação do francês Alexis Tocqueville, em seu livro A democracia na América (1835), no qual alertava para os perigos associados àquilo que denominou como a “tirania da maioria”.

Algumas experiências políticas na primeira metade do século XX, sobretudo aquelas vinculadas ao nazismo e ao fascismo, demonstraram com clareza o quanto maiorias podem ser também profundamente opressoras contra as minorias. Por isso, nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, diversas iniciativas institucionais foram impulsionadas com o intuito de proteger as minorias. Além de uma expansão significativa do poder Judiciário, com sua vocação contra majoritária, houve também um fortalecimento dos sistemas proporcionais, que buscariam garantir que as minorias não apenas seriam protegidas, mas também teriam representação e voz nos parlamentos.

Além disso, é importante destacar que, a partir dos anos 1960, os chamados “novos movimentos sociais” que ganharam destaque na esfera pública, mobilizando pautas políticas associadas às minorias – a exemplo do feminismo, do antirracismo e do combate à homofobia – passaram a demandar não apenas o reconhecimento de seus direitos, mas também uma maior participação política. Os sistemas proporcionais têm sido espaços importantes ao longo das últimas décadas para assegurarem a representantes políticos desses grupos – que mobilizam pautas minoritárias na sociedade e, portanto, dificilmente seriam eleitos em sistemas majoritários – uma possibilidade de acesso aos parlamentos para defenderem suas agendas.

Nesse sentido, para além de todos os problemas que têm sido levantados para criticar o “distritão”, é fundamental reforçarmos o quanto ele coloca em risco este pilar fundamental dos sistemas democráticos contemporâneos, relacionado à proteção das minorias. Nos últimos anos, foram realizadas algumas alterações importantes no sistema político brasileiro – como o fim das coligações proporcionais e a cláusula de barreiras. Estas mudanças são recentes e certamente trarão melhorias para a democracia nos próximos anos. É melhor aguardar esse processo de decantação dessas alterações do que buscar reinventar o sistema por completo, apostando em algo como o “distritão”, que, certamente, levará o Brasil ao pior dos cenários políticos.