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40 anos sem Glauber Rocha, as profecias deixadas e a culpa secular

Do cineasta baiano Glauber Rocha tudo, exatamente tudo, já se falou. Ninguém, na história da cultura brasileira, foi tão rotulado: gênio (o mais alto da raça), louco, visionário, polêmico, de direita, de esquerda, revolucionário, anarquista, arrivista, narcisista, causador de turbulências… Seus filmes (fez 17 – dez longas, dois de média metragem e cinco curtas) foram dissecados ao extremo, assim como seus cinco livros, peças de teatro e as críticas de cinema. Porém, cada vez menos. E à medida que o tempo passa, a tendência é se falar menos de suas obras e mais de suas profecias. Paulo Emílio Salles Gomes dizia que a função do profeta não é acertar e sim profetizar, mas até nesse ponto Glauber contrariou a lógica, pois acertou.

“Terra em Transe”, lançado em 1967, antecipou em quase 50 anos o que aconteceria no Brasil a partir de 2016, com o golpe contra a presidente Dilma Rousseff, o posterior governo “reformista” de Michel Temer, as eleições das mentiras, a vitória de Bolsonaro e a perplexidade atual, com a desmedida orgia militar-religiosa-miliciana.

Está tudo lá. Em Eldorado (farsa da História: foi num Eldorado que o genocida passou o último final de semana, armando o golpe de sete de setembro), a direita e a imprensa, com o apoio da FIESP e a vista grossa das centrais sindicais, conspiram para tirar a esquerda do poder. Alguém se presta ao papel de colocar as “histéricas tradições em ordem”. Surge no cenário uma figura que se apresenta segurando uma cruz (“A família é sagrada”), um revólver, uma bandeira e proferindo impropérios contra todos. Um arrependido, cínico e doravante sem perdão, constata, depois: “As nossas riquezas, as nossas carnes, as vidas, tudo. Vocês venderam tudo!”. Eleições se aproximam, mas tudo é incerto: “Vamos dar um golpe, virar a mesa, fazer história. Se houver eleições, Vieira (um ex-sindicalista) ganha, se não houver, ganho eu”.

No meio disso tudo, o povo.

A propósito, “Viva o povo brasileiro” foram as últimas palavras de Glauber Rocha antes de morrer (há exatas quatro décadas e aos 42 anos de idade). Seu interlocutor, nessa derradeira conversa, foi o escritor também baiano João Ubaldo Ribeiro, que usou, depois, essa saudação em seu livro mais famoso. A frase, porém, diz mais que isso, realça a conhecida dubiedade de Glauber em relação ao povo – dubiedade talvez, no entanto, não seja o termo, e sim dialética, um conceito não mais usado nesse país que, assim como a humanidade, tem-se a impressão, “emburreceu”.

Dialética presente tanto na cena de “Terra em Transe” (quando Paulo Martins tampa a boca do Homem do Povo, para que ele não fale “besteiras”) quanto no cego Júlio lembrando a Antônio das Mortes, em ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol”, que “a culpa não é do povo, a culpa não é do povo…” – constatação repetida, três vezes, por Sara ao mesmo Paulo Martins.

De quem seria então a “culpa”? Paulo Martins tem toda essa má vontade porque provavelmente o povo sairia “correndo atrás do primeiro que lhe acena com uma espada ou uma cruz”, como o vaqueiro Manoel de “Deus e Diabo…”, preconizando que, na desordem em que se encontra o país, por “mais de um século ninguém conseguirá” falar, marchando todos, alguns sem culpa, para o “abismo aí aberto”.

Glauber defendia que “mais fortes são os poderes do povo” desde seu primeiro filme, “Barravento” (a história do pescador que volta à aldeia natal e encontra seus antigos companheiros na mesma situação de sempre: explorados pelos donos da rede e passivos). E não é outro grito de guerra senão esse em cenas cruciais: de Corisco, ao morrer, em “Deus e o Diabo…” a Antão, ao matar, em “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro.”

Porém, do universo glauberiano não vieram a “guerra do sem fim” anunciada por Antônio das Mortes nem a perda da obediência (“O romper de vez! Deixar o vagão correr solto”) como chega a querer o ambíguo Paulo Martins, e nenhuma afirmação política do povo.

E tudo se deteriorou. Do jeito que o país está hoje, “nos confins da ignorância e nos cafundó do medo”, não faltará um lunático bolsonarista, como o coronel Horácio, de “O Dragão da Maldade…”, para tentar resumir a responsabilidade de forma irracional: “A culpa de tudo isso é da bomba atômica!”