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Memórias do Breve Século XX

(Foto: Reprodução)

Não lembro de nenhum filme que tenha me tocado tanto quanto o documentário “Nós que aqui estamos por vós esperamos”. Escrita e dirigida por Marcelo Masagão, a produção – lançada em 1999 – tenta resumir algumas das principais questões que marcaram o primeiro século em que a humanidade produziu, ano após ano, imagens técnicas que testemunharam a sua trajetória no planeta. O filme, todavia, é muito mais do que uma retrospectiva: tendo como pilar essencial o livro “A Era dos Extremos”, de Eric Hobsbawn, além das obras de Sigmund Freud e Marshall McLuhan, o documentário consegue fazer com que o público se sinta transportado para vários dos momentos centrais do século XX.

A genialidade, porém, está nos personagens escolhidos por Masagão para contar a história da “era dos extremos”. Ao invés de concentrar esforços em explicar os atos dos governantes, o roteiro irá mergulhar no cotidiano dos governados. Este é o sentido do aviso que aparece na tela já no início da película: “pequenas histórias, grandes personagens; pequenos personagens, grandes histórias”. Este é o segredo do diretor para nos transportar ao dia a dia de tempos já distantes.

Assim, numa narrativa que beira a enumeração fantástica, uma profusão de vidas se delineia e evanesce diante de nossos olhos: o empregado da primeira linha de produção da Ford, trabalhando 12 horas por dia até morrer de gripe espanhola; o alfaiate que despenca da Torre Eiffel ao testar uma geringonça que inventara para voar; o operário russo enviado para a Sibéria porque discordara do regime; o jovem kamikase que escreve uma carta se despedindo dos pais antes de lançar seu avião sobre um navio norte-americano, as gerações de soldados que lutam, guerra após guerra, atendendo ao chamado do Tio Sam…

Mas há muito mais que isso: há as mulheres anônimas que participaram do processo de emancipação feminina; há o engenheiro que instala lâmpadas numa exposição sobre eletricidade; há o jovem que nunca teve lâmpadas em casa, mas morre na cadeira elétrica; há o coveiro que jogava dominó; o garimpeiro de Serra Pelada; o trabalhador rural que gostava de Coca-Cola. Há Woodstock; há Garrincha e Fred Astaire; há o operário nos arranha-céus; há a conquista da Lua; há os quadros de Picasso; há TV, rádio e aspirina…

A vertiginosa sucessão de personagens e eventos se resume numa imagem: um homem está sentado sobre as engrenagens da roda de um vagão que se põe em lento movimento. Conforme o trem avança, o homem sobe e desce, carregado pelo sacolejar da máquina. É este o movimento que Masagão pretende contar: o de uma humanidade que passou séculos inventando geringonças que, no fim, assumem o protagonismo da história e acabam por nos carregar num vórtex sem fuga possível.

Uma visão pessimista, sem dúvida. Sem prejuízo do belo filme, prefiro ficar com outra, também parte da história: no início da década de 60, Hermann e Rainer trabalham na construção do Muro de Berlim. Depois de terminarem a obra, decidem pulá-lo, para viver do outro lado!

O absurdo deste salto traz, para mim, um alto grau de simbolismo: é o salto sobre as agruras, sobre as barreiras “intransponíveis” que construímos para nós mesmos, o renascimento sempre possível, ainda que improvável. Um chamamento para a esperança de que, se houve um processo que fez de Gregor Samsa um inseto, há de se encontrar um caminho para transformá-lo em homem, novamente.