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Corretor de texto é uma vista

Quando você quer escrever um texto sério, no WhatsApp ou no Word, vem aquele clipe sempre feliz e te corrige (Foto: Natalia Y/Unsplash

Nem no título o corretor perdoa: era pra ser bosta. A palavra mais gostosa de se falar na língua portuguesa: bosta.

Numa aula esta semana (uma das minhas preferidas, mas que no Ead parece só mais uma falação diante de uma câmera pra outras três ligadas e mais vinte apagadas), o assunto foi de palavras que soam como o que representam. É uma teoria da linguística (acho, mas aprendi com Zeluiz e Malu Ribeiros) que mostra um som ligado à imagem. Água, por exemplo, é gostosa de falar com a boca cheia d’água, ou fingindo. Algodão é outra palavra que vale fingir ter as bochechas acolchoadas, fica fofinho. Pedra é dura e se desfaz. Bosta cai da boca cheia e faz barulho no chão. Muita palavra gostosa nessa língua, mas o corretor não acha.

A ideia deste texto veio da conversa com um amigo. Ele enviou a matéria sobre uma menina de 15 anos alegando que o sonho dela era ter o velho da Havan como príncipe encantado. E ele foi ao aniversário dela (o velho, não o meu amigo). Ao devolver a matéria com o comentário “sapo”, ele perguntou se tinha sido uma opção ou se a escrita era “saco” e o corretor mudou. E ainda veio  a ressalva: detalhe que a menina tem 15 anos!

Quem já viu a série Como se tornar um tirano, da Netflix, ou estudou História, sabe que 15 anos não é um detalhe em regimes totalitários. Quando a palavra “prostituição” entrou na conversa, o corretor não ajudou com o acento ou a cedilha. Porra, corretor, vai ser pudico assim na casa do carvalho!

Precisamos falar sobre prostituição, sobre pedofilia, sobre depressão, sobre suicídio, sobre tantas coisa e sobre o Kevin também. Tem filme e o livro da Lionel Schriver, jornalista e escritora cheia de escritos que tratam de coisas que parecem distantes, como problemas no sistema de saúde (Tempo é dinheiro), cultura e obesidade (O grande irmão) ou fake news em regimes totalitários (A nova república). E o Kevin, a criança que mata coleguinhas. Em tempos de Covid, ele nem precisaria de arma (parei pra não ampliar o spoiler).

O corretor de texto das redes sociais tem duas funções: manter o cidadão na bolha Poliana de politicamente correto omissa dos temas polêmicos ou integrá-lo cada vez mais em suas propostas pedagógicas pro futuro (ou seja, circularam muitos “feliz dia dos paus” no início do mês). Se você escreve, ele repete; logaritmo algoritmo é assim.

Quando você quer escrever um texto sério, no WhatsApp ou no Word, vem aquele clipe sempre feliz e te corrige. O clipe deve ter Facebook, é feliz demais, surreal. Se você digita qeu, vai escrever qeu pra sempre, porque ele vai trocar pra que. Ele te corrige, te ajuda, ou finge que tá te ajudando. Na verdade, tá te afastando do problema. No dia em que a Terra parar você vai precisar de uma máquina pra datilografar e vai perceber que tem analfabetismo teclal.

A Terra não vai parar!? Tem um filme com esse nome (dois, um remake com o Keanu Reeves), mas também tem a Eletrobrás sendo vendida, a Cemig sucateada pelo Zema, os Correios entregues pra daqui a pouco deixarem de ser seus, sem contar os telefones que o Fernando Henrique vendeu e que hoje te oferecem cada vez menos qualidade por uma fatura crescente. Gás de cozinha e gasolina… Tá, cê já entendeu, né? A Terra só vai girar pra quem pagar.

Se privatizarem os Correios corre o risco de o frete grátis pros livros do Hupokhondría acabar? Melhor não esperar. Link na bio.

E o mundo segue na pressa de deixar o corretor escrever e sugerir. Tem até o exercício de escrever uma palavra e ver o que vem em seguida, ir clicando até formar uma frase. Já ouviu aquela história de que até um macaco pode, por probabilidade, mesmo que remotamente, escrever um soneto de Shakespeare numa máquina de datilografar?

E os áudios? Pura merda! Cada podcast de vazios que até ouvindo em 2x dá sono ou dor de cabeça. Tempo é dinheiro, moçada, não rola de perder falando ou ouvindo bobagem. Bora investir no Control+Z.

Mas não dá. O que tá na rede tá gravado. A merda que cê falou, o blog que deletou, a conta de rede social que não existe mais e o nude que mandou… tudo tá em algum lugar. E um dia tudo será usado contra você. Nada de distopia aqui. Só que o povo fica tão no corretor, tão no Control+Z, que daqui a pouco tá dando tiro no outro e gritando Lázaro!

E a vida continua, a terra gira, pessoas morrem, o corretor se torna seu superego nas redes sociais e no Palácio do Planalto segue um governante de vista.