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Memória em chamas: os incêndios, o patrimônio cultural e a política brasileira

Parte do acervo que restou após incêndio em um dos galpões da Cinemateca Brasileira, no bairro da Vila Leopoldina, em São Paulo (Foto: Corpo de Bombeiros/SP)

O mês de setembro de 2018 teve início com uma triste notícia: na noite de domingo, dia 2, o Museu Nacional, localizado no Rio de Janeiro, foi consumido pelas chamas. O incêndio, que chocou o país e provocou reações até mesmo de quem não conhecia o espaço e seu acervo, representa uma tragédia anunciada e um sintoma de um país pouco preocupado com a preservação da memória. Prestes a completar três anos dessa ocorrência, na noite do último dia 29 de julho, fomos surpreendidos com mais uma notícia revoltante: a Cinemateca Brasileira, localizada em São Paulo e destinada a preservar e difundir a produção audiovisual do país, tornou-se palco de mais um incêndio, o quinto de sua trajetória, conforme os levantamentos indicam.

Nas duas situações, o descaso com a memória, o patrimônio cultural e a pesquisa se revela ainda mais surpreendente, visto que houve alerta prévio das condições das unidades. No caso do Museu Nacional, os funcionários ainda conseguiram salvar alguma coisa. No caso da Cinemateca, a demissão anterior dos servidores seguida da delonga para recontratação e abertura de processos de manutenção são apenas o fio mais visível do emaranhado de controvérsias que rondam a gestão pública.

Na ocasião de 2018, quando o Museu Nacional literalmente “pegou fogo”, era período eleitoral. Eu, enquanto pesquisadora vinculada ao Grupo de Pesquisa em Mídia e Esfera Pública da UFMG e ao INCT Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação, engajei-me em compreender como os presidenciáveis analisavam a questão, o que propunham em seus programas de governo, qual importância atribuíam ao que ocorreu e que medidas adotariam para mitigar os danos e prevenir novas tragédias como essas, caso fossem eleitos. Retomarei aqui alguns aspectos essenciais dos resultados da análise que fiz e do artigo que publiquei à época no site do INCT.

Sabem o que o então candidato Jair Bolsonaro respondeu aos repórteres na ocasião, quando foi questionado sobre a sua avaliação do ocorrido? “Já pegou fogo, quer que eu faça o quê?” Após a polêmica ocasionada por essa declaração, Bolsonaro se justificou no Facebook, dizendo: “a chamada da UOL refere-se à minha resposta ao comentário idiota de seu jornalista sobre o Museu ter sofrido um incêndio. Pura demagogia! Enquanto procuram problema em minhas palavras, fecham os olhos para os verdadeiros responsáveis pela destruição nosso Brasil!”

Tais episódios e declarações tonam urgentes a reflexão sobre o modo como lidamos com a construção de nossas memórias e sobre o papel exercido pelos atores políticos, os meios de comunicação e as políticas de cultura e memória no processo de compreender o que representa o patrimônio histórico e artístico de um país.

Segundo Andreas Huyssen, no texto Culturas do passado-presente, a memória é “crucial para a coesão social e cultural da sociedade”, sendo a rememoração do passado útil para a avaliação de erros. Para definir a “estrutura social da memória”, Maurice Halbwachs, em A memória coletiva, ponderou que as memórias são construções sociais, sendo a sociedade responsável por definir o que é memorável e onde essa memória será preservada. Sob tais perspectivas, rememorar representa proceder com escolhas, selecionar, imobilizar algo. A memória é, portanto, seletiva, fragmentada e constituída de esquecimento. Para Huyssen, o passado só é recuperado em forma de memória quando existe interesse ou motivo no presente, sendo influenciado por ele.

As memórias são construções sociais, sendo a sociedade responsável por definir o que é memorável e onde essa memória será preservada

Mas que tipo de memória o Brasil tem interesse em preservar? Sabe-se que o Estado, o jornalismo, as mídias sociais, os atores políticose os formadores de opinião, dentre tantos outros atores, auxiliam na definição daquilo que será “imobilizado” pela sociedade e se tornará memorável. Ou seja, é a partir daquilo que mobiliza a população, do que é priorizado nas políticas públicas e do que é noticiado pelos meios de comunicação que de algum modo elegemos as pautas que serão colocadas no centro da arena pública.

Não é de hoje que os jornais brasileiros denunciam o descaso com os museus, a falta de investimentos em manutenção e conservação em unidades culturais.  Não é de hoje também que os problemas elétricos, de segurança e os riscos de incêndio em espaços públicos vêm à tona. O incêndio no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, ea tragédia da Boate Kiss, em Santa Maria, servem de exemplo de como ainda lidamos de modo equivocado como as memórias. Criamos comoção nacional diante dos fatos, mas o que fizemos desde então para prevenir incêndios? Ou melhor: o que fizemos para preservar vidas e também nossa memória? O alarde nesse sentido não bastou para que a prevenção fosse adotada.

Talvez estejamos apagando incêndios em vez de preveni-los. Felizmente as chamas no Museu Nacional se iniciaram após o horário de funcionamento, não houve feridos. Poderia ter sido pior. Se na Boate Kiss perdemos vidas, agora perdemos história e pesquisa. Duas tragédias evitáveis e que revelam um ponto em comum: falta ao Brasil políticas de memória. Falta também colocar tais temas em pauta sob outras perspectivas e discuti-los com a sociedade de modo mais transparente.

Em novembro de 2017, audiência pública da Comissão de Cultura da Câmara dos deputados fez um alerta para os riscos de que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) viesse a ser fechado. O Iphan é uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Cultura responsável pelo reconhecimento de bens culturais de natureza material e imaterial e por estabelecer formas de preservação desse patrimônio. Na ocasião, a presidente do instituto, Kátia Bogéa, informou que, em 80 anos, só foram realizados dois concursos públicos para o setor e que o Iphan tinha 516 cargos vagos, o que comprometia o trabalho.

Uma das últimas políticas públicas de porte voltadas à memória nacional esteve atrelada ao funcionamento da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Desde então, o que vem sendo feito? Em quase sete anos após a conclusão dos trabalhos da CNV o Brasil sequer foi capaz de implementar uma de suas recomendações: a criação de um memorial nacional dedicado a reunir material do período da ditadura militar e a compartilhar com a sociedade as memórias do período autoritário.

Ao analisar as falas dos atores políticos nas mídias sociais e nas entrevistas que concederam à imprensa na ocasião das eleições 2018 e do incêndio do Museu Nacional, é notável que todos percebem um problema de investimentos em memória e patrimônio. Poucos sabem, mas o direito à memória consta no terceiro Programa Nacionalde Direitos Humanos (PNDH-3), que o atual governo tem planos de revisar.

No caso da análise que realizei em 2018, ficou nítido que as declarações dos presidenciáveis privilegiaram a imputação seletiva de culpa. Poucos são os gestores e atores públicos que assumem para si uma parcela da responsabilidade. Tal fator demonstra que, vislumbrando capitalizar votos em momento eleitoral, os atores políticos preferiram apontar erros específicos do que discutir problemas estruturais e propor formas de superá-los caso viessem a ser eleitos.

Manifestações no Twitter

Em 3 de setembro de 2018, dia seguinte ao incêndio do Museu Nacional, o tópico passou a ser um dos assuntos mais comentados nas mídias sociais. No Twitter, ocupou a dianteira dos Trending Topics na data, sendo a hashtag #LutoMuseuNacional a mais utilizada pelos usuários da rede. Também pelo Twitter, nove dos 13 presidenciáveis lamentaram o ocorrido. Apenas Cabo Daciolo (então Patri, hoje sem partido), Jair Bolsonaro (então PSL, hoje sem partido), José Maria Eymael (DC) e Vera Lúcia (PSTU) não se manifestaram sobre o ocorrido naquela ocasião na plataforma.

Manifestações no Facebook

Na semana seguinte ao ocorrido no Museu Nacional, com exceção de Cabo Daciolo, todos os demais perfis dos presidenciáveis no Facebook tiveram post com comentário sobre o episódio.

Alguns deles reproduziram as mesmas postagens do Twitter ou publicaram informações semelhantes. Outros preferiram mudar o tom, ainda que o reconhecimento da importância do museu tenha sido unânime para todos os candidatos que se pronunciaram a respeito.

A diferença foi demonstrada no modo como os presidenciáveis buscaram apontar motivos para o que teria ocorrido. Os pontos principais apontados por eles podem ser divididos em três aspectos: (1) corrupção ou emprego incorreto dos recursos e da função pública, que consta nas publicações de Álvaro Dias (Pode) e Bolsonaro; (2) descaso e gestão ineficaz, mencionados por Álvaro Dias, Amoedo (Novo), Bolsonaro, Boulos (PSOL), Ciro Gomes (PDT), Eymael, Haddad (PT), Marina Silva (Rede) e Vera Lúcia; e (3) corte de investimentos, citados por João Goulart (PPL, hoje PCdoB), Marina e Vera Lúcia.

De todos os presidenciáveis, apenas Álvaro Dias e Jair Bolsonaro culparam explicitamente a administração direta do museu. Segundo Dias: “Os dirigentes do Museu Nacional devem ser demitidos imediatamente”. Já Bolsonaro acusou implicitamente os servidores de despreparo para a função ao afirmar que “as indicações políticas em troca de apoio são os maiores causadores da má administração pública e que nossa ação neste caso seria acabar com essa rotina que visa apenas interesses pessoais e partidários”. Chama a atenção o fato de o então candidato do PSL não ter lamentado nas mídias sociais a destruição do museu.

O que os programas de governo (não) diziam?

Ocorrido em plena campanha eleitoral, o incêndio do Museu Nacional deveria ter deixado um alerta e servido como legado para esta e as próximas gestões federais, estaduais e municipais. Mas analisar o que os presidenciáveis e seus partidos propunham em termos de políticas culturais e de memória, bem como para a conservação do patrimônio histórico, já era um sinal de alerta para o que estamos vivenciando hoje, vide o incêndio na Cinemateca.

Considerando os programas de governo divulgados pelas 13 campanhas que concorriam à Presidência, foi feita busca simples pelos termos: “conservação de museus”, “cultura”, “incentivo à cultura”, “memória”, “museu”, “patrimônio histórico”, “políticas públicas”, “política de memória”. O resultado é sintomático do quanto a preservação do patrimônio histórico, artístico e cultural do Brasil fica à margem das propostas de governo.

Nos planos de governo “Plano de Nação para a Colônia Brasileira”, de Cabo Daciolo; “Um futuro de prosperidade está aberto a todos os brasileiros”, de Geraldo Alckmin (PSDB); “Pacto pela confiança”, de Henrique Meirelles (MDB, hoje PSD); “O caminho da prosperidade”, de Jair Bolsonaro; e “16 pontos de um programa socialista para o Brasil contra a crise capitalista”, de Vera Lúcia, não havia nenhuma menção aos termos.

A que conclusões podemos chegar?

A inexistência de menções dos termos “cultura”, “memória”, “museu”, “patrimônio” e de seus desdobramentos de interesse para a análise em cinco dos 13 planos de governo demonstraque amanutenção e a preservação dos bens culturais foram um tópico ignorado em quase metade das campanhas.

Em alguns planos de governo, o termo “cultura” até foi localizado, mas com conotação a outras áreas, como “agricultura”, “cultura do esporte”, “cultura de planejamento”, etc. Isso revela que pensar o patrimônio cultural do povo brasileiro, desenvolver maneiras de preservá-lo, garantir acesso aos bens culturais e estimular a produção artística não foram considerados pelas campanhas de cinco presidenciáveis como diretrizes de governo.

E, até mesmo nos programas em que tais termos foramabordados, ou não representaram um tópico prioritário ou, quando foram tratados com mais destaque e profundidade, como nos programas da Rede e do PT, não citaram metas nem de modo concreto quais tipos de medidas seriam realizadas.

O simplismo com que, após o incêndio do Museu Nacional, alguns presidenciáveis trataram da questão em suas redes sociais – houve ainda quem ignorasse o fato – também é revelador da carência de reflexões e discussões complexas sobre nossos erros passados e problemas crônicos. A gravidade do incêndio fez com que alguns imputassem culpa seletiva. Ignoraram, entretanto, que os problemas percorrem gestões. E essa é a gravidade. Pensar o patrimônio requer que revisitemos nossas memórias e que, no presente, pensemos em medidas para mitigar os danos passados e vislumbrar prevençãofutura. Ao limitar o que houve a um erro pontual e ao não abordar tal desafio em seus planos de governo, nossos presidenciáveis não promovem um trabalho de memória.

Isso demonstra que a questão das políticas culturais e de memória no Brasil ainda carece de mais debate e preocupação. Além de investimentos, claramente necessários para promover e manter os bens culturais acessíveis à população, o país precisa pensar sobre o seu patrimônio e sobre as memórias que deseja preservar. Caso contrário, tragédias como a do Museu Nacional e da Cinemateca continuarão ocorrendo. Que neste momento, e nas eleições de 2022, elas sirvam de reflexão e façam com que a sociedade mantenha o tema nas arenas de discussão públicas.