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Saudade de ir ao cinema

É, cinema tem pessoas. Às vezes muitas, às vezes poucas (Foto: Krists Luharers/Unsplash)

“No final do ano sai o novo Matrix!”

“Cinema ou streaming?”

Tem gente que responde que dá na mesma, mas não dá. Cinema, aquele cinema mesmo, que o Platão mostrou na Caverna, não cabe no streaming. Vira filme no streaming, mas é streaming, não é cinema. Streaming é televisão.

Televisão não é só um aparelho numa caixa de madeira ou com controle remoto. É a linguagem, o jeito caseiro, mesmo que coletivo, de assistir o trem. YouTube é televisão e passa filme lá também. Nem todo filme é cinema, tem filme pra TV, filme pra celular e tem TikTok. Curta metragem é filme também, mas nem sempre é cinema.

Cinema tem um monte de coisa que tem na televisão. Tem luz, tem câmera, tem movimento e ângulo com um monte de nome em língua estrangeira (dóli, trávelin, plongê), tem elenco, direção, produção e tanta equipe quanto o dinheiro deixa. Só que a televisão não tem aquele  escurinho.

– Se apagar a luz da sala, tem!

Se apagar a luz da sala continua tendo a luz da tela vindo na sua cara. Cinema tem aquela luz que vem de trás, te espionando, olhando por cima do seu ombro e querendo saber o que você tá vendo. Enquanto você espreita o que a fechadura chamada câmera registrou pra você ver.

– E se tiver um projetor na parede? Um datashow?

Cinema é sala escura com um monte de gente, igual naquele filme que tem um multiplex, com várias salas, vários filmes diferentes em cartaz, gente na bombomniér, um sujeito que espirra e passa o vírus pelos dutos de ar pra todas as outras pessoas que estão se divertindo ali. Epidemia, com o Dustin Hoffman.

É, cinema tem pessoas. Às vezes muitas, às vezes poucas. Às vezes só você. Dá até pra conversar no cinema (a história é real), como numa sessão de quarta-feira de tarde na terceira vez em que Coração Valente entrou em cartaz no (finado) Cine Veneza. Três pessoas na sala, desconhecidas. E os comentários “esse cara é bom!” “a próxima cena é a melhor!” “o que ele fez agora não é pra qualquer um!” vinham dos três cantos. Na saída, nem adeus.

Pior é que o povo deu pra conversar no cinema toda hora. Tem quem fale com o colega do lado, outro que grita pro que tá mais longe e ainda quem fale sozinho, mas o vizinho da frente ou do lado ouve e se importa. (No final de Cisne negro, duas mulheres se levantaram dizendo “que trilha sonora maravilhosa!”.)

Criança mal educada também tem, chutando a cadeira. E também tem irresponsáveis do lado que têm medo das crianças e preferem olhar de cara feia pra pessoa da cadeira da frente que vira incomodada pra trás. Pais, por favor, sejam… pais. Ou digam pros professores, pra quem terceirizam essa parte, que devem ir com seus filhos ao cinema também.

Pipoca e refrigerante também fazem parte do cinema. Tem um meme daqueles com o Bart Simpson escrevendo no quadro dizendo que “Não foi a Netflix que acabou com o cinema. Foi a Coca-cola de 10 reais e a pipoca de 30.” (Dava pra sintetizar dizendo que foi o Paulo Guedes.) O Rubem Fonseca tem uma crônica gostosa sobre pipoca e cinema no livro O romance morreu.

O que não vale é mastigar de boca aberta e chupar o ar daquele final do copo de refri. Filme vem com som desde os anos 1920, mas tem gente que ainda não percebeu. Em alguns casos, pouco som. Silêncio é signo também. Ver Amor, do Michel Haneke, faz até chiado de asmático parecer motor de Fusca no cinema. Que silêncio fantástico! (Sair com 2/3 do saco de pipoca fria no final da sessão não teve sentimento de culpa.)

Outra lição: o celular. Se ele não tem modo avião (ou se você não pode usar), não entre na sala. Algum diretor de fotografia calculou a intensidade da luz da cena e de repente, plim!, acende três fileiras na sua frente uma tela. Caramba, fique em casa! Se é pra ter luz na cara, fique com o streaming!

Cinema é espetáculo desde 1895. Espaço de muita gente pra ver filme. E também de muita gente que não vai pra ver filme. Saudade do tempo em que o casal se beijando em poltronas próximas eram os únicos dispersos do filme.

E se todo o resto mata de raiva, até dessa saudade de um tanto de falta de educação se vive hoje em dia, pra não morrer de outra coisa.