Conjuntura

Três medalhas, três terrenos e R$ 280 mil: o que falta para construir uma pista de skate?

Skatistas de Santos Dumont se mobilizam desde 2016 por uma pista de skate (Arte gráfica: Camila Matheus)

Para fazer história nas Olimpíadas de Tóquio, com as medalhas de Rayssa Leal, Kelvin Hoefler e Pedro Barros, o skate precisou, antes de qualquer coisa, vencer o preconceito e as proibições à sua prática. Uma delas, talvez a mais conhecida, se passou na cidade de São Paulo no fim da década de 1980.

Jânio Quadros, então prefeito da cidade, usou como justificativa para impedir o skate dentro do parque do Ibirapuera “a séria ameaça contra adultos, senhoras e, sobretudo, crianças, cujo abuso é impossível corrigir”.

A proibição durou cerca de seis meses. Eleita prefeita de São Paulo, Luiza Erundina revogou o decreto na primeira semana de 1989 e acabou contribuindo para a popularização do esporte na cidade.

Outra proibição, bem menos conhecida e bem mais anacrônica, ainda vigora no município de Santos Dumont. O decreto municipal nº 2.904, de 16 de fevereiro de 2016, “proíbe a prática de skate na Praça Cesário Alvim e dá outras providências”.

Por via das dúvidas, duas placas antigas, já gastas pelos tempos e contratempos, permanecem de pé na Praça Cesário Alvim, a principal da cidade, com letras garrafais: “Proibido andar de skate na praça”. Tudo bem que já teve quem fosse lá e colocasse uma fita sobre a expressão “proibido”, mas o entendimento permanece.

Duas placas com a proibição permanecem de pé na Praça Cesário Alvim (Fotos: Leonardo Costa)

“Então, onde vamos andar de skate?” A pergunta do estudante Marcello Filgueiras em meados de 2016 é o pontapé inicial da história que levou O Pharol até a terra natal do pai da aviação. Mas antes é preciso falar das medalhas, que podem mudar os rumos dos fatos.

Três medalhas

Kelvin Hoefler não só conquistou a primeira medalha do Brasil na Olimpíada de Tóquio, como estava no primeiro pódio da história do skate em Jogos Olímpicos. Mas a modalidade não foi sua primeira opção.

Antes da medalha de prata no skate street masculino, Hoefler tentou outros dois esportes: surfe e futebol. Com medo de água fria e sem muita habilidade nas quatro linhas, migrou para o skate aos oito anos.

Incentivado pelo pai, começou a andar de skate em uma pista improvisada dentro de casa, no Guarujá, litoral paulista. Sua rampa ia da cozinha até a garagem com alguns obstáculos. Daí para a profissionalização foi um ollie.

Avesso aos estereótipos ainda imputados ao esporte, com praticantes meio ‘largados’, Hoefler foi adepto da dedicação e disciplina. Nisso também, seu pai, policial, ajudou e apoiou o tempo todo.

Se Kelvin Hoefler fez história com o primeiro pódio olímpico do skate, Rayssa Leal simplesmente saiu de Tóquio como a mais jovem medalhista olímpica do país. Seu feito foi alcançado aos 13 anos e 203 dias.

Jhulia Rayssa Mendes Leal nasceu em 2008 na cidade de Imperatriz, no Maranhão. Seu primeiro contato com o esporte foi aos seis anos, quando, por influência de um amigo de seu pai, ela começou a andar de skate.

Sua trajetória no esporte começou a mudar quando um vídeo com suas manobras viralizou na internet. Então com sete anos, vestida de Sininho, a fada do filme Peter Pan, ela mandou uma heelflip e decolou.

A terceira medalha do skate brasileiro veio com Pedro Barros. O skatista catarinense conquistou a medalha de prata na modalidade skate park.

Aos 26 anos, Pedro Barros celebrou a medalha de prata com um discurso às novas gerações de skatistas. “Podemos fazer do nosso país um lugar melhor através do amor e do respeito. A gente pode cair várias vezes no chão, mas a missão é ver um amanhã melhor.”

Como é quase regra na modalidade, a paixão pelo skate veio ainda na infância. Aos três anos e por influência do pai, que também é skatista, Pedro começou a fazer suas primeiras manobras.

O skatista conquistou o cenário mundial com apenas 14 anos, quando ficou em terceiro lugar no X Games de Los Angeles, em 2009. Antes da medalha, já acumulou 12 títulos, entre eles o Campeonato Mundial.

Os três terrenos

Pedro Barros conhece bem a saga dos skatistas à procura de uma pista em Santos Dumont. Mas, antes de explicar como ele entrou na história, é preciso retomar o fio da meada. A Prefeitura havia proibido a prática de skate na Praça Cesário Alvim, e a turma não sabia para onde ir. Na ocasião, um secretário municipal recomendou que os skatistas usassem…. a pista de skate.

Sim, Santos Dumont, tem uma pista de skate. Mas é quase como se não tivesse, explica o vereador Conrado Luciano (PT). O espaço foi construído em uma região bem íngreme no início dos anos 2000 sem projeto próprio. “Na época, fizemos contato com o então deputado Biel Rocha (PT) que enviou uma emenda e depois de algum tempo fizeram a pista”.

Como a obra não foi projetada por especialistas, os obstáculos ficaram muito próximos das rampas, o que acabou levando a acidentes mais sérios. Além disso, o difícil acesso e a falta de infraestrutura no entorno foram afastando os usuários. O Pharol esteve no local e encontrou a estrutura no mais completo abandono. A pista, segundo Conrado, sequer foi inaugurada.

Quando, em 2016, os skatistas foram advertidos para usar a pista e não a praça, eles concordaram em parte. Usariam um espaço próprio para a prática do skate, mas não o existente. Queriam um novo. A turma se reuniu, foi até o prefeito e conseguiu uma área no Tangará Tênis Clube, que havia sido incorporado pelo município.

Sem projeto e sem recursos para construção de uma pista, os skatistas fizeram uma vaquinha e construíram alguns obstáculos no local. A ideia funcionou até a Prefeitura autorizar um circo a se instalar na área. Desavisada, a trupe acabou destruindo os obstáculos da pista improvisada. Quando o circo recolheu a lona e partiu, os skatistas estavam novamente sem ter onde dar um “rolê”.

A turma do skate, como passou a ser conhecida, não desistiu. Primeiro, o deputado Júlio Delgado (PSB) sinalizou a possibilidade de enviar uma emenda para uma pista. As conversas, no entanto, pararam na Prefeitura. Isso já era 2018.

Eleito vereador, Conrado, que desde o início da saga acompanhava os skatistas, procurou a então deputada e hoje prefeita Margarida Salomão (PT) em busca de uma emenda. Ela condicionou os recursos à existência de um projeto. O projeto, por sua vez, precisava de uma área definida para ser elaborado.

A turma do skate e o vereador foram até o prefeito Carlos Alberto de Azevedo (Betinho – Cidadania). Em abril de 2019, ele encaminhou ofício à deputada colocando à disposição do projeto uma área de 2.511 metros quadrados situados no loteamento Belvedere.

Com o terreno e a sinalização de emenda, faltava o projeto. Sem dinheiro e com pouco tempo, alguém deu a ideia de procurar a MRS Logística S.A. que apoia alguns projetos dos municípios cortados por sua linha férrea. Deu certo. Um arquiteto skatista fez o projeto.

Com a planta em mãos, a emenda de R$ 280 mil foi liberada. Mas a obra não. Um abaixo-assinado com pouco mais de 30 assinaturas chegou às mãos do prefeito e dos vereadores. Os moradores do Belvedere registravam “total repúdio a qualquer doação do terreno para a finalidade acima descrita (pista de skate)”.

O motivo: acreditavam “que tal empreendimento é, de certa forma, prejudicial e nocivo às pessoas que já se encontram ali instaladas e irá afetar diretamente a rotina dos moradores do Belvedere.” Foi o bastante para demover o prefeito.

A situação só se agravara. Sem terreno e com um projeto perdido, os skatistas corriam risco de ficar sem os recursos da emenda federal. Eles cogitaram, então, refazer tudo em uma área próxima à estação ferroviária. A ideia era referenciar o local como espaço para prática de esportes e eventos culturais.

A Prefeitura não gostou da sugestão e levou a pista para o Tangará. Lá onde a turma do skate havia improvisado uma pista, destruída pela trupe circense. Nova área, novo projeto. Já desgastados com os apoiadores externos, o jeito foi fazer uma vaquinha para o novo projeto. Nessa, até secretários da Prefeitura entraram.

Os R$ 280 mil

Se, na saga pela construção da nova pista de skate em Santos Dumont, os skatistas e o vereador Conrado Luciano tiveram uma vitória, essa foi a emenda parlamentar de R$ 280 mil da então deputada Margarida Salomão. O problema é que, desde então, o medo passou a ser perder os recursos.

Fabrício Andrade, Secretário Municipal de Meio Ambiente, Turismo, Esporte e Lazer de Santos Dumont, confirmou para O Pharol que a nova pista será feita no Tangará com os recursos da emenda. Ele, no entanto, não precisou quando as obras serão iniciadas.

A proposta do município é revitalizar toda a área e as dependências do Tangará Tênis Club, com a construção da pista de skate como parte do projeto. Segundo o secretário, os entendimentos estão sendo feitos com o vereador Conrado e com o conhecimento do presidente da Associação de Skate de Santos Dumont, Marcelo Silveira Filgueiras.

Autora da emenda, Margarida chama atenção para o desafio que é a construção ações para a inclusão de jovens por meio do esporte. “O poder público é constantemente desafiado a efetivar políticas públicas para a juventude. Hoje, é muito claro como o skate pode contribuir para tanto, seja porque é reconhecido como prática esportiva de fato, seja como um fenômeno cultural, pela forma como estabelece laços entre as pessoas, forja identidades.”

Mesmo com a sinalização da Prefeitura para um acerto definitivo, Conrado chama atenção para os prazos. Há um processo burocrático próprio das emendas parlamentares que precisa ser feito pelo município. “Se a Prefeitura não apresentar o nosso projeto na Caixa Econômica este ano, perderá o recurso.”

Além do recurso propriamente dito, segundo ele, a cidade pode perder talentos. “O nosso projeto de pista possui padrão elevado, podemos ter skatistas da cidade disputando campeonatos nacionais. Sem a pista, Santos Dumont não contribui para a evolução desse esporte, além de outros como roller, bicicleta e patinete.”

“O skate transforma”

Sabe as três medalhas olímpicas de Rayssa Leal, Kelvin Hoefler e Pedro Barros lá do início da matéria? Pois são elas a aposta derradeira do vereador Conrado Luciano e da turma do skate para tirar do papel a nova pista. Toda a repercussão em torno dos medalhistas e da modalidade olímpica pode ajudar a romper preconceitos.

“Não é só uma questão de morosidade. O skate na cidade sempre foi marginalizado. É por isso que a primeira pista sequer foi inaugurada e foi feita com as medidas erradas. Além disso, existem proibições da prática do skate e muita reclamação de moradores”, explica Conrado.

Para ele, “a morosidade na construção dessa nova pista, mesmo com projeto e recurso de execução definidos, é a consequência dessa marginalização.” O resultado da demora e dos constantes atrasos acaba sendo determinante para alguns praticantes do esporte.

Conrado conta que um skatista da cidade, com participação e premiação em torneios, hoje raramente pratica. “Há dois anos, um jovem skatista me perguntou se a pista realmente vai sair, porque ele queria ser professor e montar uma escolinha de skate. Hoje ele se mudou para Juiz de Fora, conseguiu ser professor, mas no ramo de barbearia.”

Para Marcello Filgueiras, que em 2016 perguntava onde andaria de skate, o desfecho de todo o processo hoje depende apenas da Prefeitura. Presidente da Associação dos Skatistas de Santos Dumont, ele conta que sempre teve atuação proativa no processo de construção da pista de skate no município.

“Com nosso próprio dinheiro, em financiamento coletivo, fizemos dois projetos com um arquiteto especializado em skate, para que o projeto fosse feito por quem entende do assunto e vive o skate, para fazer o que mais atende os skatistas da cidade, de maior custo benefício”.

Ele conta ainda que, mesmo nas questões burocráticas, sempre tentaram ajudar, por meio de “contato com órgãos administrativos”, promovendo “reuniões com os responsáveis, para ajudar na documentação e viabilizar contato”. No entanto, “a Prefeitura encara como intervenção indevida.”

Passados quatro anos, com reuniões oficiais para viabilizar a construção da pista, dificuldades burocráticas e “preconceito de alguns moradores”, segundo Marcello Filgueiras, “a Prefeitura tem a faca e o queijo na mão”. “Temos os recursos, o terreno e o projeto. Falta interesse da Prefeitura em mandar construir a obra.”

Durante as idas e vindas do projeto para construção da pista de skate em Santos Dumont, Pedro Barros, que nem medalhista olímpico era ainda, ficou sabendo da luta da galera. É assim que ele entra na história, ou melhor, é com o recado dele que O Pharol encerra a história. Pelo menos por enquanto.

“Você deve continuar essa luta. O skate transforma não só o indivíduo, mas uma comunidade inteira. Quem pratica esporte ocupa o tempo com coisas boas, cria boas amizades e conhecimento. Lute fortemente pelo skate e ele estará do seu lado sempre.” Pedro Barros.

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