Holofote

Volta às aulas não pode reforçar a desigualdade entre alunos de escolas privadas e públicas

Em um passeio pelas redes sociais, lendo depoimentos ou revendo conversas de grupos, há boas referências ao Sistema Único de Saúde (SUS) em virtude da vacinação contra a Covid-19. “Vacinei no Posto de Saúde de São Pedro. Foi rápido e fui bem atendido”. “Tomei a vacina Pfizer na UBS (Unidade Básica de Saúde) de Santa Cecília. Muito bom, cara. Estava tudo limpo. Pessoal educado.”

A vacinação acabou levando usuários de planos de saúde às unidades do sistema público. E, para os espantos de alguns, o atendimento é bom, a infraestrutura encontra-se em boas condições e há servidores trabalhando com profissionalismo. Muito diferente do imaginário de uma boa parcela da população, que esperava encontrar bagunça e abandono.

É a pandemia revelando, desnudando, assustando. Elogios, exclamações e, exaltações, muitas vezes, desapercebidamente, revelam o distanciamento do mundo real, do andar de baixo. Isso mesmo para os defensores do sistema público de saúde. É que o habitual para quem não se sente parte é o olhar condescendente, de cima, apenas para as cicatrizes, mas, como canta Emicida, “elas são coadjuvantes, não, melhor, figurantes, que nem devia tá aqui”.

Com a educação, a história é a mesma. Mas as aulas, diferentemente das vacinas, não são prerrogativas exclusivas do estado. Talvez por isso não há nas redes sociais elogios surpresos às escolas das redes públicas municipal e estadual, bem como às suas professoras e aos seus professores. Assim, o distanciamento se mantém não revelado. O que há é um apelo embotado pela volta às aulas respaldada pelos donos da rede privada.

“A escola dos meus filhos atende todos os protocolos. Por que não voltar?” “Lá, onde meus filhos estudam, reformaram tudo, tá pronto.” Mas e lá onde os netos do porteiro estudam? E os filhos da moça que trabalha lá em casa (eufemismo medonho)? A escola deles terá rodízio ou a infraestrutura permite aulas normais? Mas não é assim que a banda toca. O raciocínio é mais cruel.

Na longa audiência pública sobre a questão na Câmara Municipal, a lógica foi a das cicatrizes. O pai com cinco filhos que não tem com quem deixar as crianças. Alunos com necessidade de acompanhamento pedagógico presencial. A merenda que faz falta. Seguindo o raciocínio, para quem precisa tanto, qualquer coisa serve. Vai-se improvisando, afinal, como defendem os vereadores, a escola é serviço essencial.

O problema também não passa pelos professores. A ideia falaciosa muito propagada de que os docentes, com respaldo do Sindicato dos Professores, não querem voltar para as salas físicas chega a ser desumana. Ninguém melhor do que as professoras e os professores sabem das implicações de se manter por tempo indeterminado crianças e adolescentes longe da convivência escolar. Está com eles a esperança derradeira para a tarefa hercúlea de conter os danos.

Voltar com as aulas agora, nas condições atuais, só reforça as disparidades que marcam a educação na pandemia no Brasil, um dos países que teve escolas fechadas por mais tempo no mundo. Desde a chegada do coronavírus, alunos mais pobres têm tido menos acesso ao ensino remoto e menos oportunidades de voltar à sala de aula. Mantém-se a máxima de que desigualdades preexistentes alimentam desigualdades para a frente.

De acordo com dados do Pisa (avaliação organizada pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), o Brasil tem a segunda maior desigualdade do ponto de vista educacional entre estudantes ricos e pobres, entre 79 países avaliados. Pesquisadores não têm dúvida de que essa desigualdade educacional cresceu ainda mais durante o isolamento.

Sem condições mínimas nas escolas públicas, o retorno pode aumentar ainda mais essa desigualdade. Isso sem contar que, em muitos casos de retorno das atividades presenciais, o que se verificou nas escolas particulares foi a continuidade do trabalho feito a distância durante a fase de isolamento. E pensar que, na escola pública, houve sérias dificuldades para acesso on-line.

Vereadores e professores devem cobrar as secretarias municipal e estadual de Educação quais investimentos estão sendo feitos em cada escola, a quantas anda a vacinação da comunidade escolar, como será o transporte escolar, onde as crianças vão merendar, qual a situação dos alunos com deficiência, quais as consequências do retorno diante da circulação da variante delta.

Os pais da rede privada, com maior poder de vocalização, também são bem-vindos aos desafios da escola pública.