No papel branco, o desenho feito a lápis, com traços infantis, mostra a imagem de uma criança inclinada de lado, os pés esticados para a esquerda da folha e uma das mãos apoiada no sombreado de grafite que faz as vezes de chão. Na sequência, o mesmo personagem de linhas simples e cabelo encaracolado apoia-se sobre as mãos, de cabeça para baixo, as pernas erguidas para cima. A depender do observador desavisado, poderia ser o resultado de uma rasteira. Ou poderia, para os mais entendidos, ser um passo de break. “Fazer da queda um passo de dança” talvez fosse um bom título para a obra do jovem artista, tivesse ou não Fernando Sabino usado a frase — que se tornou mais citada que o livro — em seu romance mais famoso, 65 anos atrás.
A ilustração foi feita como resposta à atividade proposta pela docente Elizabeth Scaldaferri, professora de dança na Escola Municipal Doutor Antonino Lessa, no bairro Santa Efigênia, em Juiz de Fora. Soa inusitado o desenvolvimento de uma atividade de dança em tempos de aulas remotas, sem contato físico com os alunos e com todas as dificuldades enfrentadas por professores e estudantes da rede pública. No início, para Beth, pareceu, na verdade, quase impossível. Nesta última reportagem da série sobre o trabalho docente na pandemia, contudo, O Pharol buscou histórias não de superação, esse substantivo tão apreciado pelos meritocráticos, mas por algo que o desenho infantil e a frase de Sabino traduzem bem melhor: a reinvenção.
“Se um dia passar essa pandemia — porque tem dia que eu fico tão desacreditada que penso que não vai passar é nunca —, acho que será uma reinvenção mesmo da escola, para a gente dar um ‘up’ necessário há muito tempo na educação”, opina a professora. “Voltar ao que era antes da pandemia, isso nunca mais.”
Fazendo valer a referência ao título da obra mais conhecida do escritor mineiro, talvez, em nível macrossocial, o Brasil tenha perdido um encontro marcado com a educação. Isso se deve ao fato, denunciado por O Pharol, de que, mesmo com R$ 1,2 bilhão a serem destinados à infraestrutura do ensino básico no país no primeiro semestre deste ano, o MEC não investiu um único centavo nesse fim. Deve-se também à recusa do Governo Bolsonaro de assegurar conectividade aos estudantes e professores de escolas públicas, mesmo durante as atividades escolares remotas adotadas como medida extraordinária de enfrentamento à Covid-19. Deve-se ainda à cruzada do Governo federal e seus aliados empreendida contra o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) no ano passado. Deve-se, antes mesmo disso, ainda no Governo Temer, à Emenda Constitucional 95, que estabeleceu um teto de gastos, limitando investimentos em políticas públicas. E se deve agora à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 13/2021, aprovada em primeiro turno no Senado no último dia 15, que autoriza prefeitos e governadores a descumprirem os pisos mínimos de investimento em educação nos anos de 2020 e 2021, sem risco de punições.
Se o próprio Ministério da Educação parece querer e dizer, ao longo de toda a pandemia, que a educação pública “dance” (num sentido pejorativo que substitui outro verbo de sonoridade similar), tentar fazer da queda um passo de dança foi uma tarefa muito empreendida individualmente e/ou de forma microcoletiva, dependendo da força de vontade de cada docente, de cada escola.
Juiz de Fora inicia nesta semana o processo de retorno às aulas presenciais, em modelo híbrido e dentro dos protocolos sanitários divulgados pela Prefeitura. A última versão do documento, publicada no dia 14 de setembro, reduziu o distanciamento de 1,5 metro para 90 centímetros, exceto em área de alimentação, e aumentou a utilização dos espaços das instituições de ensino, bem como do transporte escolar, para 50% da capacidade por vez, seguindo os mesmos números adotados pelo estado de Minas Gerais). O Pharol aproveita este momento, contudo, para lembrar que não se trata de um recomeço, mas de uma sequência, que não apaga esforços empenhados, a duras penas, desde março do ano passado, quando as atividades desenvolvidas no espaço físico das escolas tiveram que ser suspensas.
O baile (não) interrompido
Trabalhos como o desenvolvido pela professora Beth Scaldaferri também não começaram com a pandemia. Apesar de formada em Pedagogia, a professora atuou como bailarina profissional em uma companhia por 18 anos antes de voltar a Juiz de Fora e ingressar na educação. “Isso foi em 2014. Aí foi que eu tomei conhecimento de que já há algum tempo a rede municipal trabalhava com as quatro linguagens artísticas: dança, teatro, música e artes visuais. Todo ano é lançado um edital e me inscrevi. Falei: ‘Vamos ver o que vai dar’. E aí me encantei tanto pela rede municipal quanto por esse trabalho.”
Desde então, Beth cursou sua segunda graduação, em Artes Visuais; duas pós-graduações — uma em dança e teatro na educação e outra em metodologia do ensino de dança, teatro, música e artes visuais; e, atualmente, é aluna do mestrado profissional em dança na Universidade Federal da Bahia (UFBA). “Esse programa foi o primeiro programa de mestrado profissional no Brasil e lá também é onde está o único doutorado em dança que a gente tem no país”, conta.
“Quando retornei e entrei para a Prefeitura, comecei a lecionar nessa escola no Santa Efigênia e tenho conseguido, mesmo como contratada, permanecer durante esses oito anos na mesma escola. Então, consegui acompanhar o que a dança, o teatro, a arte podem contribuir tanto na educação quanto ali na comunidade. Meu projeto de mestrado é sobre isso: estudar a relação entre processo de criação em dança na educação básica com o processo de ensino-aprendizagem a partir da minha prática aqui.”
A dança existe como elemento curricular na rede municipal de Juiz de Fora, segundo a docente, há cerca de 25 anos. De 2014 para cá, porém, na Escola Municipal Doutor Antonino Lessa, a modalidade artística também se juntou à produção audiovisual, tudo feito a partir de criação coletiva dos estudantes. Projeto desenvolvido pela professora na escola foi inclusive, neste ano, semifinalista do XXII Prêmio Arte na Escola Cidadã, promovido pelo Instituto Arte na Escola, de São Paulo. “Ao todo, nesses oito anos, a gente tem 12 trabalhos montados. Eu não crio a dança e eles me copiam. A gente faz tudo interligado. Hoje em dia, eles participam de tudo na construção do vídeo, são operadores de câmera… A única parte que eles não fazem é a edição, mas consigo ver a reverberação desse trabalho nos alunos que já saíram da escola e que hoje são DJs ou fazem pequenas coisas de produção cultural dentro dos bairros onde moram”, relata Beth.
E aí vem a pandemia. “Num primeiro momento foi um susto para todo mundo, inclusive para quem gere a gente. A Secretaria de Educação, o estado, o país, para todo mundo. Mas logo depois as indicações vieram para as escolas e a gente começou a atuar”, destaca. “Não gosto muito quando eu escuto falar ‘retorno às aulas’ porque não é retorno. Na verdade, não parei nunca, a não ser no meu período de férias que é estipulado por lei. Mas desde o dia seguinte, quando a gente foi obrigado por essa pandemia a estar em casa, que a gente se articula para manter o calendário, o ensino, mesmo que isso, ainda no início, não chegasse dentro das casas porque ninguém sabia como isso ia acontecer.”
Como dar continuidade, porém, de forma remota, a um trabalho eminentemente físico, ainda mais com a desigualdade de acesso à internet por parte dos estudantes das escolas públicas e a negação do governo federal em ao menos tentar dirimi-la?
“Nossa escola não é de tempo integral, mas de tempo estendido. O aluno que estuda de tarde chega lá às 10h da manhã, fica de 10h às 13h e, às 13h, vai para a escola regular. E o aluno que estuda de manhã, quando termina o período às 11h, fica até as 14h. Geralmente, são alunos que estão em vulnerabilidade social ou que têm dificuldade de aprendizagem, então eles têm esse tempo estendido na escola com alguns outros componentes curriculares, que são a dança, a informática, o laboratório de aprendizagem e a leitura. São esses alunos que eu atendo e, para além disso, abro algumas vagas para quem quer fazer. Quando vem a pandemia, isso não existe mais.”
Com a mudança brusca, Beth passou a atuar, nos limites da conectividade, com todo mundo. “E aí também muda um pouco a perspectiva do trabalho, porque estou lidando agora também com meninos que, às vezes, não tinham interesse.”
O envio de atividades é feito como em outras escolas da rede, conforme orientação da Secretaria de Educação. “A gente faz os cadernos para serem enviados para casa. Vamos à escola, enviamos e, no dia que a gente envia, a gente pega o caderno que o menino fez. Aí a gente corrige e, no mês seguinte, a gente devolve corrigido e entrega um novo.” Há também os grupos de WhatsApp, que, embora não possam se configurar como aulas nesse contexto desigual, foram uma forma encontrada de estar em contato com os estudantes.
“Acho que todos os professores de todos os componentes curriculares estão tendo que se reinventar. Principalmente quando é educação infantil e educação básica, porque no ensino superior a gente já tem alguns cursos que são on-line e parte do pressuposto de estar lidando com adultos. Mas com criança — e com criança pequena — torna-se muito mais difícil”, considera. “Dentro da dança é uma coisa que, a princípio, ficou surreal, porque, como eu disse, não trabalho com cópia. Não trabalho com eu aqui fazendo movimento, 1, 2, 3,4, 5, 6, 7, 8 e você me copiando. Então, como vou atingir esse aluno, como vou levar isso para ele?”
O projeto “Dança no papel” surgiu mais como dúvida do que como resposta. “Este ano estou trabalhando com ensino fundamental I, que na minha escola é do segundo ao quinto ano, e com o envio de material para casa e no grupo de WhatsApp. O que eu tento é que esses dois materiais conversem, mesmo que alguns alunos tenham acesso só a um e outros alunos tenham acesso aos dois”, explica Beth. “Comecei trabalhando ludicamente a história da dança. Tem uma revistinha da Turma da Mônica que conta a história da dança. Então, enviei esse material. E aí conta que o homem primitivo dançava, que ele registrava essa dança nas cavernas. A partir disso, proponho que o aluno execute em casa alguma coisa. Nesse material, pedi para eles colocarem uma música, para eles dançarem como eles quisessem, para eles se moverem do jeito que eles quisessem. E pedi que eles registrassem essa dança no papel igual os homens primitivos faziam.”
O resultado surpreendeu a professora. “No mês seguinte, peguei essas apostilas. Gente, cada desenho tão engraçadinho, tão bonitinho… Não é bonito de beleza, de estar colorido não, mas, assim, muito expressivo, sabe?”. Beth fotografou algumas das ilustrações e criou o livro “Dança no papel”, a partir do qual surgiu uma nova atividade: escolher um desenho e contar uma história. Paralelamente, a docente tem trabalhado com os estudantes a criação de um minidocumentário. “Toda semana lanço uma proposta no grupo de WhatsApp para eles estarem relacionando corpo e câmera. E é muito incrível porque, às vezes, as professoras ficam lá 15 minutos para conseguir fazer e os alunos em dez ou cinco minutos estão me devolvendo. Claro que está bastante difícil, porque os celulares e as internets estão muito sobrecarregados, os celulares têm imagens ruins… Mas procuro sempre valorizar o que eles me mandam nesse momento.”
Segundo ela, os materiais impressos enviados para casa sempre reportam ao trabalho que está sendo desenvolvido pelo WhatsApp, embora esta seja uma atividade à parte. “Quem não está participando do WhatsApp consegue fazer. Há pouco tempo fiz para eles uma pequena historinha do que é uma videodança. Aí as imagens que usei na apostila são imagens que eles me enviaram. Então, quem está no grupo de WhatsApp vai falar: ‘Olha, sou eu’, e quem não está vai falar: ‘Olha, é meu colega’. Estou tentando trabalhar sempre assim para ver se estimula, porque do mesmo jeito que a gente, às vezes, se sente desestimulada, está cansativo para eles também.”
Uma nova escola?
Se houve algo que ficou patente desde o início da pandemia, apesar de tantos obstáculos enfrentados, foi a potência da arte e sua necessidade para o ser humano. Na escola isso não é diferente. “Quando me formei em Pedagogia pela UFJF, a única matéria de arte que eu tive no meu currículo como pedagoga foi arte na educação infantil, que também era voltada quase para um artesanato. Colorir, desenhar, fazer dobradura e tal. Então, quando a gente chega à escola, muitas vezes a direção e a coordenação também não sabem o que pedir de você”, comenta Beth.
“De oito anos para cá já mudou muito, mas geralmente as escolas pedem a dança como uma atividade lúdica, uma atividade para trabalhar assim: ‘Vamos desestressar o menino’. É sempre a ‘dancinha’: a dancinha da festa junina, a dancinha do dia da família… Mas dança é uma área de conhecimento. Sempre participei de todas as atividades da escola, mas fui mostrando com o fazer que a dança estava em outro lugar, que ela possibilitaria outro conhecimento.”
De certo modo, correndo o risco de romantizar o irromantizável, aquilo que nunca deveria ter acontecido, a Covid-19 também precipitou, se não outras formas de conhecimento, a experiência de uma outra escola. “Eu adoro o que faço, amo mesmo, adoro a escola. Minha parte artista continua, continuo atuando como bailarina, em projetos… Agora não mais em companhia, mas me realizo muito trabalhando arte dentro da escola. Principalmente, gosto muito da escola em que estou. E tudo que posso trazer, fazer, tentar, vou tentando. Então, essa coisa de retorno para mim não existe porque não parei de trabalhar um minuto. E um trabalho muito exaustivo, porque é um trabalho que a gente não sabe como fazer, que a gente está aprendendo como fazer. Não é nossa opção, não falaram para mim assim: ‘Você quer trabalhar presencial ou você quer trabalhar remoto?’. É um momento do mundo. Não é aqui de Juiz de Fora. Não é do Brasil. É um momento do mundo”, reflete.
“Aquela velha escola, para mim, com a pandemia, caiu, porque acho que nunca mais a tecnologia vai deixar a educação, nunca mais a arte vai deixar a educação, porque olha o tanto que perceberam que a arte é importante no momento que estava todo mundo confinado. Ou mesmo com a defasagem, principalmente da escola pública, em relação à tecnologia… o quanto a tecnologia está sendo importante, mesmo que a gente consiga atingir poucas pessoas ainda. A gente não atinge pouco porque a gente quer, é porque a gente precisa de um governo que invista em informatizar e dar um bom acesso de internet às escolas, que invista na educação.”
Da interrupção um caminho novo
Experiências de novas escolas, onde a arte e a cultura se fazem essenciais, não surgiram com o coronavírus. Em Juiz de Fora, a Escola Municipal José Calil Ahouagi, no bairro Marilândia, tem sido, já algum tempo, exemplo de reinvenção do papel escolar. “Currículo é muro”, como disse, em bate-papo remoto com os professores da instituição, realizado no mês passado, o historiador, escritor, compositor e professor Luiz Antônio Simas. “Mas não há muro que não tenha fissura. E é nessas fissuras que dá para trabalhar.”
De acordo com a professora e coordenadora Gisela Pelizzoni, doutora em Educação pela UFJF, a Escola Municipal José Calil Ahouagi já vem, há mais de 20 anos, contestando a cultura escolar canônica e repensando as práticas excludentes. “A questão da cultura afro-brasileira, por exemplo, é trabalhada por nós antes mesmo de ser lei. Então, é uma escola que tem um lastro de investigação, de pesquisa e tudo mais.”
Um lastro que, mais uma vez tomando emprestadas as palavras de Simas na conversa com o corpo docente da unidade, não se equilibra exatamente sobre “culturas de resistência” — porque isso seria pressupor que elas só existem como reação às opressões que lhes são colocadas —, mas justamente sobre “culturas de de invenção”.
“A José Calil Ahouagi é uma escola de tempo integral. Quando entrou a pandemia, a gente meio que ficou sem chão. Acho que todas as escolas públicas do Brasil, mas aqui de Juiz de Fora posso falar com clareza. A gente ficou meio paralisada, porque ninguém conhecia exatamente o comportamento do vírus. Eu me lembro exatamente do dia, porque eu estava numa praia deserta lá em Paraty e não sabia. Saí de um mundo sem Covid e voltei para um mundo completamente Covid. Foi 16 de março de 2020. Quando voltei, levei um susto. A escola tinha fechado as portas, só que ninguém sabia exatamente quanto tempo ia durar, então ficou aquela espera. Se falava assim: ‘Ah, mas semana que vem quem sabe volta’. Aí depois virou um: ‘Daqui a um mês a gente volta’. E isso foi a rede municipal toda, porque a Secretaria de Educação também ficou nessa espera”, recorda-se Gisa.
“Passados três meses, a gente recebeu uma doação de um curso em que trabalho como professora também. Um curso particular de formação de professores cuja dona ofereceu a possibilidade de a gente montar uma caixa para ir para a casa das crianças. Era uma caixa de MDF que a gente chamou de caixa viajante. Criamos uma logo e conseguimos montar uma caixa com materiais de arte, com caderno de memória para eles registrarem como estava sendo esse momento fora da escola — um diário de campo mesmo —, brinquedos, álcool gel, máscara, uma série de coisas. E um livro muito bonito que foi feito pela professora da UFMG, a Mônica Batista, que chamava ‘Um diálogo com as crianças em tempo de Covid’. A gente conseguiu um livro desse para cada criança para iniciar um diálogo”, enumera.
“A José Calil atende 300 crianças que vão dos 4 anos até os 14. Tempo integral da educação infantil até o nono ano. Só que a verba que a gente conseguiu, esse patrocínio, atendia só as crianças até o quinto ano, até porque o curso de Pedagogia lá, da Pedagogia para a Liberdade, é uma formação até essa faixa etária. Mas foi bem bacana, a gente mandou para as famílias, foi um primeiro contato depois de dois meses. Primeiríssimo mesmo, porque até então nada, não é?”, narra ela. “E para os meninos do sexto ao nono a gente criou um canal no YouTube para iniciar um diálogo com as crianças, porque a gente partiu da premissa de que não ia rolar um ensino síncrono on-line e tudo mais.”
Segundo Gisa Pelizzoni, até o momento de começar a entrar no mundo virtual, ninguém sabia de nada. Ela mesma, inclusive, sequer tinha WhatsApp até março de 2020. “Nossa, eu tinha pavor. Os outros professores até tinham, mas eles não sabiam montar um vídeo. É outro ofício esse em que a gente estava entrando. Lembro o nervoso que foi fazer os primeiros vídeos para as crianças, a fragilidade desse lugar. A gente também está muito vulnerável num lugar em que a gente não sabia fazer, a gente estava ganhando uma outra linguagem. Foi um momento de muito choro, de muito nervosismo, professoras mais velhas, de 60 anos, desesperadas, que não sabiam nem lidar…”, relembra a professora.
“Só que foi chegando junho e nada de falar de volta. Começamos a vislumbrar que a gente entraria agosto também sem estar presente com as crianças e aí a gente resolveu, enfim, tentar alguma coisa mais de perto, para além do YouTube, porque era muito demorado, as respostas não aconteciam. A gente queria interação lá nos comentários. Um ou outro comentava, mas a gente não sabia exatamente quem estava vendo e quem não estava.”
Foi quando surgiu uma nova perspectiva. “A gente recebeu uma ajuda muito preciosa do professor Tião Guerra. Ele é um pedagogo social que trabalha como consultor no mundo inteiro e, por uma coincidência, acabou chegando à José Calil. Ele era um amigo meu de muitos anos, foi meu professor 20 anos atrás. Acabei falando com ele das angústias que a gente estava vivendo e o Tião resolveu fazer uma consultoria gratuita para nós. Formação mesmo, não só uma consultoria. Ele ficou com a gente no início de agosto do ano passado durante duas semanas fazendo uma formação não só de criar um Classroom, de pensar linguagens, mas também de fazer a gente criar formas de acionar um diálogo mais profícuo com essa comunidade.”
O conselho do pedagogo foi que os docentes e a instituição se ancorassem nos fios que já existiam. “A José Calil é uma escola que trabalha muito com cultura popular, com os festejos, a gente trabalha com a questão das identidades negras, faz Congado, faz uma coroação de rei há 15 anos. O Rei do Congo, a Rainha do Congo, os tambores, o Bumba-Meu-Boi, as contações de histórias… são coisas que criam um laço muito forte com a comunidade.”
Para se ter uma ideia, as crianças têm antropologia como disciplina desde cedo na instituição. E a cada novembro, mês da Consciência Negra, a Congada toma a escola. “Não é só uma festa que acontece em novembro. Desde agosto a gente começa uma discussão fecunda com as crianças, desde os pequenininhos. Mas aí, quando eles chegam no quinto ano, a gente escolhe um rei e uma rainha e é um rito de passagem da infância para a adolescência”, emociona-se Gisa. “Os alunos do sexto ao nono ano também participam, só que eles são mais da percussão, dos tambores. Eles dão sustentação rítmica para a festa.”
O trabalho proposto por Tião Guerra partiu dessas memórias. “Quando ele propôs isso, ele já estava fazendo um trabalho na comunidade da Maré, lá no Rio, dizendo que tinha dado certo. Então, ele criou para nós uma escola virtual no Classroom. Não era para conversar com os alunos, era entre nós. Um Classroom para a gente ter lá a escola toda montada, tudo bem organizado, um lugar que era praça pública para a gente discutir o coletivo em si. E a gente começou a se reunir, enquanto coletivo de escola, toda terça-feira. Desde agosto até agora nunca falhou. Só no Natal que a gente parou.”
A percepção de Gisela é de que a escola, enquanto coletivo, cresceu. “As discussões foram muito mais adensadas, a gente se fortaleceu tanto nas fragilidades emocionais quanto na ideia mesmo de cultura escolar, do que a gente fazia. Está sendo muito bacana.”
Para as famílias, assim como em outras escolas da rede, atividades começaram a ser enviadas, impressas e/ou pelo WhatsApp. “A gente manda cinco atividades. A cada segunda-feira elas são enviadas e eles têm uma semana para trazer de volta, devolver em forma de vídeos, de fotografias, de áudios e tudo mais. A gente manda também materiais físicos para quem não tem acesso. Mas, para nossa surpresa, uma grande maioria tem acesso à internet. O WhatsApp é um canal muito democrático, muito possível”, opina.
“Outra surpresa que aconteceu foi uma relação muito estreita com as famílias. Antes a gente tinha um contato nas festas e na hora de a mãe levar e buscar a criança. Agora você estava ali na carga da família, compartilhando as angústias, as discussões, ajudando uma mãe a alfabetizar. Teve muitas crianças do primeiro e do segundo ano que se alfabetizaram na relação escola/família. A professora ensinava a mãe como fazer e a mãe era a grande mediadora ali. Mesmo se a mãe, às vezes, nem soubesse tanto, não transitasse tanto pela cultura do escrito, ela dava conta. Claro, tem outras que não deram conta. A gente tem várias realidades acontecendo, muito múltiplas, assim como em tudo, não é? A pandemia realmente aflorou desigualdades sociais muito grandes, ficou tudo muito evidente. Tem crianças que não conseguimos acessar ainda. Por mais que a gente chame, que a gente leve a atividade na casa, a família não consegue realizar por N motivos de desestrutura social, várias outras questões”, lamenta.
“Mas, de um modo geral, essas famílias são bem poucas hoje. A gente tem um grande número de famílias conosco. Lógico que não é a mesma coisa que se tivesse junto fisicamente. Vai ter uma certa defasagem no processo de construção do conhecimento que a gente vai ter que correr muito atrás agora quando voltar, mas a gente viu que é possível.”