É um truque velho nos filmes de Hollywood: personagens com desequilíbrios opostos são constrangidos, por alguma circunstância, a conviver. Neste processo, vivenciam diversas situações: trágicas, dramáticas, românticas, cômicas… O policial excessivamente metódico é obrigado a trabalhar com um parceiro desorganizado. A mulher esnobe e mandona formará um improvável par com o homem falastrão e desleixado. O jovem inconsequente e o velho cheio de amargura brigam durante toda a história para, no fim, perceberem que um é a tábua de salvação do outro.
Creio que este esquema narrativo, exaustivamente repetido, faz tanto sucesso exatamente porque reflete a forma conflituosa como se constroem as relações em nossa sociedade. Na verdade, com um pouco de autocrítica, podemos nos identificar com vários desses personagens, por mais estereotipados que sejam. E isso em qualquer meio em que convivamos: na família, nos relacionamentos amorosos, no trabalho, nos estudos, entre os amigos… Mas com uma grande diferença em relação aos filmes: no mundo real o final feliz não é garantido, sendo comum que se arrastem anos, décadas, vidas inteiras de violência e incompreensão.
“Na proximidade dos delirantes e dos tagarelas impenitentes, colocar quem, então? – senão os surdos-mudos.”
Jeremy Bentham
Jeremy Bentham, jurista inglês do século XVIII, foi um dos primeiros a perceber o potencial educativo da convivência entre opostos. Considerado por uns como um visionário, por outros como um lunático, Bentham projetou o Panóptico, um modelo arquitetônico que serviria como padrão geral para a construção de fábricas, escolas, hospitais, manicômios, prisões… Em todos os casos, ele dizia que deviam estar próximos aqueles cujas características permitissem a educação mútua ou que, ao menos, se neutralizassem.
Infelizmente, a vida em sociedade não permite essas escolhas. Com isso, ocorre a aproximação de indivíduos cujas falhas, juntas, acabam potencializadas. Tal fenômeno é perceptível, inclusive, em nosso comportamento diante das grandes questões coletivas. Comumente, nos posicionamos em um dos extremos: a alienação e a obsessão. Se pensarmos que, grosso modo, o alienado é aquele que desconhece “algo” e o obsessivo é quem desconsidera tudo que vá além deste “algo”, compreenderemos que nenhuma destas atitudes pode contribuir para uma sociedade saudável. Entretanto, quantas vezes na história a obsessão de alguns controlou a alienação de tantos, gerando aberrações como o nazismo? Ou as fogueiras medievais? Ou o linchamento que ocorre na esquina, sem que levantemos os olhos do celular?
Em todos estes casos, os desequilíbrios se somaram numa mistura explosiva. Ainda assim, o trauma coletivo que resta desses eventos é, em si, uma lição civilizadora, um alerta para os demais.
Alguém disse que os espaços de convivência humana são como sacos em que são reunidas pedras pontiagudas: conviver é sacudir este saco. Trata-se de um processo doloroso, pois as pontas de cada uma ferem as outras. É certo também que, por vezes, as pedras são tão brutas que rompem o saco. Mas, quando isso não ocorre, elas vão se polindo, podando as arestas, corrigindo os excessos nos embates cotidianos. Talvez esteja aí a grande lição do encontro com o outro: do choque entre defeitos extremados é possível construir a sabedoria de reconhecer nossos excessos e, no meio termo, encontrar uma virtude. O quanto sofremos para decidir trilhar um caminho tão óbvio é só mais uma prova de nossa persistente barbárie.