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Pés e mão de Deus

Sucesso no Festival de Cinema de Veneza “A Mão de Deus”, filme sobre Diego Armando Maradona, é uma produção da Netflix com o premiado roteirista e diretor Paolo Sorrentino (Foto: Reprodução)

Ao mesmo tempo em que Pelé estava internado em um hospital de São Paulo fazia muito sucesso no Festival de Cinema de Veneza o novo filme de Paolo Sorrentino, “A Mão de Deus”, sobre a paixão de um jovem de Nápoles pelo camisa 10 do time da sua cidade, Diego Armando Maradona. Pelé e Maradona foram os maiores jogadores de futebol da História, iguais em muita coisa na bola e diferentes em praticamente tudo na vida.

São muitos os filmes especificamente sobre Maradona, mas, creio, esse é o primeiro ficcional. Os demais são documentários, e o mais famoso deles é do sérvio Emir Kusturica. Sobre Pelé só há documentários, embora haja em filmes clássicos pelo menos duas referências icônicas ao Rei do Futebol: “A Falecida”, de Leon Hirszman, texto de Nelson Rodrigues, começa com a explicação “quando Ademir (Menezes, craque do Vasco e da seleção brasileira na década de 50, século passado) era Pelé”, e em “Fuga Para a Vitória”, de John Huston, Pelé faz o papel dele mesmo, um jovem que se destaca no trato com a bola.

A maioria das produções cinematográficas sobre Maradona cita, no título ou com destaque absoluto, a “mão de Deus”, a explicação mística, nunca sarcástica, de Maradona sobre o famoso gol contra a Inglaterra na Copa do Mundo de 1986. Na ocasião, e para todo o sempre, o soco que desviou a bola do alcance do goleiro inglês (que só o árbitro da partida não viu) virou uma poderosa analogia existencial e principalmente política, graças ao contexto da partida, disputada apenas quatro anos após a Guerra das Malvinas, e da humilhante derrota imposta aos argentinos pela esquadra inglesa.

Pelé nasceu em Três Corações, passou a infância em Bauru, consagrou-se em Santos e encerrou a carreira em Nova Iorque. Tinha “pés de Deus” e fez tudo, muito mesmo, por cada uma delas, mas em nenhuma representou para a cidade o que Maradona representou para Nápoles – e isso não diminui em absolutamente nada a relação de Pelé com as terras onde brilhou. Apenas superdimensiona o que Maradona fez pela cidade italiana, onde morou por sete anos, depois de nascer em Lanús e passar por Barcelona.

As conquistas esportivas de Maradona pelo Napoli estão nas enciclopédias: os dois inéditos campeonatos italianos 1987/1990 e a Copa da UEFA 1989, os principais. Neste último, na final contra o Stuttgart, na Alemanha, no gol do título Maradona bateu o escanteio e a defesa alemã afastou. A bola voltou em direção ao argentino que resolveu devolvê-la para a área com uma cabeçada. O inusitado e a genialidade do lance desnortearam os defensores que não viram Ferrara entrar livre e completar para as redes.

A relação de Maradona com o Napoli e com Nápoles pode ser resumida em uma frase do argentino: “Fiz o que pude. Acho que não fiz mal.” – constatação filosófica, nunca, nem de longe, com qualquer arroubo de modéstia. Sobre a alma dos napolitanos durante os sete anos de glórias e turbulências saberemos mais através de Sorrentino. O filme é autobiográfico, o jovem do filme é Sorrentino, que já declarou, em outras oportunidades, que o Napoli e Maradona salvaram sua vida.

Sorrentino ganhou o Oscar de 2014 com o extraordinário “A Grande Beleza”. O estilo do seu cinema lembra Fellini. E Maradona, há muito tempo (assim como Pelé, desde sempre), merece um filme felliniano.