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“Já que é pra tombar”: Juiz de Fora concede benefícios para preservar o patrimônio

Circular pela região Central de Juiz de Fora é como contemplar uma série de funerais do patrimônio histórico e arquitetônico da cidade. Sinal dos tempos (há algum tempo), a pergunta que se pretende cômica torna-se amarga pela recorrência: qual será o próximo casarão antigo a virar farmácia? 

Talvez não todos. Um antigo impasse na preservação dos imóveis tombados da cidade pode ser apaziguado a partir da regulamentação, no último dia 9 de agosto, da Lei de Transferência do Direito de Construir (TDC) – Lei Complementar 65/2017.  A medida foi assinada pela prefeita Margarida Salomão (PT) e publicada por meio de decreto no Diário Oficial.

O dispositivo altera o benefício concedido a donos de imóveis tombados na cidade, que agora poderão negociar o potencial construtivo de suas propriedades. Na prática, isso alivia o efeito apontado por eles do tombamento como um ônus, já que os imóveis precisavam ser mantidos em suas características originais sem o acesso a subsídios, dívida com a qual muitos proprietários ralavam para arcar – ou mesmo não conseguiam.

“O tombamento é um mecanismo eficaz e necessário para a preservação do acervo arquitetônico da cidade, contribuindo efetivamente para a preservação das nossas referências culturais e históricas. Mas o processo sempre se revelou para os proprietários como um ato lesivo, por se tratar de uma restrição parcial do direito de propriedade. A interpretação jurídica da Lei Complementar possibilita que o Ministério Público reconheça o dever do Estado em indenizar o proprietário pela propriedade tombada por considerá-la uma ação de desapropriação indireta”, explica o autor da lei, Jorge Arbach, que é arquiteto, artista e professor da UFJF. Na Câmara Municipal, o projeto da Lei Complementar foi proposto pelo vereador Garotinho (PV).

O mecanismo está em vigência e vem sendo elogiado em capitais como Belo Horizonte, São Paulo e Salvador sob o nome de Lei de Transferência de Potencial Construtivo. Para Arbach, além de desonerar os proprietários, a iniciativa tem um papel fundamental também para documentar a arquitetura do presente. 

“Daqui a algumas décadas, as edificações que estão sendo erguidas nos dias de hoje passarão a ser objetos de estudo e preservação. Estamos erguendo documentos que serão lidos no futuro, como registros de nosso tempo. E essa lei será uma excelente ferramenta à disposição para documentar a história atual”, avalia o arquiteto.

Como funciona a Transferência do Direito de Construir

Defensor dos processos de tombamento, Jorge Arbach explica que eles têm um papel fundamental no controle do espaço urbano.

“Quando ocorre uma demolição, o local pode ser ocupado com sua capacidade construtiva máxima, conforme diretrizes contidas na Lei de Uso e Ocupação do Solo. Já quando um imóvel é tombado, o potencial de construção daquele local deixa de ser aplicado. Assim, o imóvel não pode ser demolido para erguer outra edificação no mesmo lugar. Esse era o drama que atormentava os proprietários. Com a nova lei esse conflito se dissipa. Agora, o potencial de construção poderá ser comercializado em frações de até 20% para diversos locais na cidade”, explica  o arquiteto, que fez a animação explicativa abaixo. 

Arbach ressalta também que a lei não se debruça diretamente sobre aspectos relacionados a reconstruções ou descaracterizações de imóveis tombados, mas combate a sua degradação, sobretudo pela  falta de recursos para sua preservação correta e plena. 

“A aplicação desta nova lei exige do proprietário, como condição, que parte dos recursos obtidos com a comercialização da transferência sejam revertidos em favor da restauração do imóvel. Assim, parte dos recursos iniciais deve se destinar à contratação de profissionais para realização dos projetos de recuperação do imóvel, e na etapa seguinte,  mais um montante dos recursos devem ser aplicados  na execução dos respectivos projetos.”

Lei deve contribuir para preservação de corredor histórico entre a Praça da Estação e a Praça Antônio Carlos

Segundo Jorge Arbach, a longo prazo a lei deve ter um grande impacto arquitetônico da cidade ao contemplar pequenos proprietários e também  outros de caráter institucional que pressionam o poder público reivindicando o destombamento de seus imóveis.

“Nesse último caso cito o Exército, que vem solicitando desde a administração passada o destombamento do conjunto arquitetônico da Praça Antônio Carlos pertencente. É um conjunto de inspiração barroca de 1893, onde funcionava a antiga Alfândega Ferroviária de Minas Gerais. A recente regulamentação da Lei de Transferência poderá refrear tal iniciativa, evitando mutilar o corredor histórico que se inicia na Praça da Estação e desemboca na Praça Antônio Carlos, evitando apagar parte da história da cidade”, pontua o arquiteto.

Além disso, Arbach avalia que a determinação terá um impacto imaterial e afetivo muito significativo, e representa o coroamento da política pública para a preservação do patrimônio cultural de Juiz de Fora. 

“Creio que o embrião simbólico deflagrador desse processo se funda com o trauma ocorrido com a demolição do conjunto arquitetônico do Colégio Stella Matutina. Ali surge o alerta da necessidade de se implantar uma política para proteção do patrimônio cultural de Juiz de Fora. A demolição foi um fato impactante não só para a classe que usufruiu daquele espaço, mas também para aqueles que nunca pisaram ali. A edificação fazia parte do cenário cotidiano da cidade”.

O arquiteto relembra o alcance e a relevância do sentimento de perda que a demolição de um patrimônio arquitetônico e imaterial pode suscitar ao mencionar o movimento “Mascarenhas, meu amor!”, que nos anos 1980 mobilizou grupos de diversos setores pela preservação de  outro complexo de grande significado para a cidade: o conjunto da Fábrica Têxtil Bernardo Mascarenhas. 

“Agora era um bem associado à classe operária que corria risco de ser atingido pelo descaso. Aqui o Poder Público foi instigado a atender aos apelos da população em favor de sua defesa. Na sequência, outro evento emblemático mobilizador e agregador veio a ocorrer anos depois, com a restauração do Cine-Theatro Central. Foi uma mobilização social muito ampla, envolvendo integralmente o poder público. O desfecho bem-sucedido da obra consolidou definitivamente o sentimento na população pela causa da preservação dos bens históricos. E do sentido de pertencimento. Porém, era necessário um mecanismo jurídico garantidor para fazer frente à sanha de empresas sedentas por demolições”, conclui.

Parceria de proprietários com o poder público

Jorge Arbach explica que tecnicamente, Juiz de Fora possui a possibilidade de transferência do direito de construir desde 1998, quando foi aprovada a Lei 09327. O município se antecipou à instituição em âmbito federal em 2011, pelo  Estatuto da Cidade (denominação oficial da Lei 10.257 de 10 de julho de 2001, que regulamenta o capítulo “Política urbana” da Constituição). Apesar disso, o instrumento nunca foi utilizado na cidade. 

“Durante anos me mobilizei para divulgar e despertar o interesse por esta lei sem sucesso. Fui percebendo que a antiga lei não contemplava simultaneamente os principais envolvidos, ou seja, proprietários, empreendedores e poder público. A partir daí, percebi que era preciso fazer uma reformulação da lei, e fundamental sua implementação para resguardar o que restava do rico acervo arquitetônico disperso pela cidade”, avalia o arquiteto.

A lei complementar regulamentada em agosto foi sancionada ainda em 2017 pelo então prefeito Bruno Siqueira (MDB). Para Arbach, os quatro anos de intervalo entre uma ação pública e outra se deve a uma interpretação equivocada dos benefícios que o mecanismo poderia trazer para o controle da ocupação urbana. 

“Ela pode ter sido encarada como mais um mecanismo estimulador do adensamento urbano. A atual administração municipal se manifestou sensível em rever esse ponto de vista, reconhecendo que ela possibilitará aos proprietários dos imóveis tombados arquem com os custos de reforma, restauração e manutenção, e que o impedimento deste benefício seria um ato contra o bem patrimonial e cultural do município. Agindo desta maneira, o proprietário passa a ser parceiro do poder público nas políticas de preservação”, pondera o arquiteto.